Esquecida por Todos: O Último Testamento da Avó Maria
— Não me venhas pedir mais nada, Inês! — gritei, com a voz embargada pela mágoa, enquanto a porta da cozinha batia com força. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o perfume antigo das flores secas que enfeitavam a mesa. O relógio de parede marcava seis da tarde, mas dentro de mim o tempo parecia não passar.
Inês, a minha filha mais velha, olhou-me com aqueles olhos frios que já não reconheciam a mulher que um dia fui. — Não é pedir, mãe. É só… preciso de ajuda para pagar a renda este mês. — A voz dela tremia, mas eu sabia que não era por emoção. Era por hábito. Por saber que, mesmo depois de tudo, eu acabava sempre por ceder.
O silêncio instalou-se entre nós. Lá fora, ouvia-se o som dos miúdos a jogar à bola na rua. Lembrei-me dos meus netos: o Pedro, a Sofia e o Miguel. Há quanto tempo não os via? Dois anos? Três? O tempo escorria-me pelos dedos como areia fina.
Quando o meu marido, António, morreu, pensei que a dor seria insuportável. Mas nunca imaginei que a solidão pudesse ser ainda pior. A casa grande onde criámos os nossos filhos tornou-se um labirinto de memórias e corredores vazios. As fotografias nas paredes eram testemunhas silenciosas do que fomos e do que já não somos.
— Mãe, estás a ouvir-me? — insistiu Inês, impaciente.
— Estou. Mas já não tenho mais para dar. — Senti as lágrimas a quererem romper, mas engoli-as com orgulho. — Precisas de aprender a viver sem depender de mim.
Ela bufou e saiu, deixando-me sozinha com o som do relógio e o cheiro do café frio. Sentei-me à mesa e olhei para o envelope amarelo onde guardava o testamento que escrevera na noite anterior. Tinha decidido: era altura de pôr tudo por escrito. Não porque esperasse gratidão ou reconhecimento, mas porque queria deixar claro quem fui e o que senti.
Naquela noite, escrevi:
“A quem encontrar estas palavras: fui mãe, fui avó e fui esquecida. Dei tudo o que tinha e mais um pouco. Se algum dia sentirem saudades minhas, lembrem-se de que a saudade só dói quando é verdadeira.”
Os dias seguintes passaram lentos e iguais. O telefone tocava cada vez menos. As visitas rareavam. Só a vizinha D. Rosa vinha de vez em quando trazer pão quente ou perguntar se precisava de alguma coisa.
Uma tarde, ouvi vozes no portão. Era o meu filho mais novo, Ricardo, acompanhado da mulher e dos filhos. O coração bateu mais forte — talvez viessem para me ver, para matar saudades.
— Olá mãe — disse Ricardo, sem olhar nos meus olhos. — Precisávamos de falar contigo sobre a casa…
A esperança morreu ali mesmo, no alpendre da entrada.
— A casa? — perguntei, tentando esconder o tremor na voz.
— Sim… Sabes como estão as coisas difíceis para todos. Achámos que talvez pudesses vender e dividir… — A mulher dele interrompeu-o com um olhar reprovador.
— Não é altura para isso — disse ela, mas eu já sabia onde aquela conversa ia parar.
Fingi não perceber e convidei-os para entrar. Os netos correram para o jardim, indiferentes à tensão dos adultos. Fui buscar bolachas e sumo, como fazia antigamente, mas ninguém tocou em nada.
A conversa arrastou-se entre silêncios constrangedores e frases soltas sobre dívidas e dificuldades. No fim, saíram tão depressa como tinham chegado.
Fiquei sentada no sofá até ao anoitecer, ouvindo os passos deles a afastarem-se pela calçada. Senti-me pequena, invisível na minha própria casa.
Na semana seguinte, recebi uma carta do banco: a reforma mal chegava para as despesas básicas. Pensei em pedir ajuda à família, mas lembrei-me dos olhares frios e das palavras ditas a medo. Decidi vender algumas peças antigas — o serviço de chá da minha mãe, os lençóis bordados à mão — para pagar as contas.
O Natal aproximava-se e com ele a promessa de reencontros que nunca aconteciam. Preparei rabanadas e sonhos como sempre fizera, mas ninguém apareceu. Passei a noite sozinha, ouvindo ao longe os foguetes da aldeia vizinha.
No início do ano seguinte, adoeci. Uma gripe forte deixou-me de cama durante dias. D. Rosa foi quem me socorreu, trazendo sopa quente e ligando ao centro de saúde quando percebeu que eu não melhorava.
Foi ela quem encontrou o envelope amarelo na gaveta da minha mesa-de-cabeceira quando veio buscar roupa lavada para mim.
— Maria… isto é importante? — perguntou ela, segurando o envelope com cuidado.
Assenti com um gesto cansado.
— É o meu testamento — murmurei. — Se alguma coisa me acontecer…
Ela apertou-me a mão com ternura.
Quando finalmente recuperei forças para me levantar da cama, decidi telefonar à família. Ninguém atendeu. Deixei mensagens curtas: “Estou doente”, “Preciso de falar convosco”. O silêncio foi a única resposta.
Os meses passaram devagarinho até ao dia em que senti que já não tinha forças para lutar contra a solidão. Escrevi uma última carta:
“Queridos filhos,
Se algum dia lerem isto é porque já cá não estou. Perdoem-me se vos falhei como mãe ou avó. Perdoem-se uns aos outros também. A vida é curta demais para se viver de costas voltadas.”
Assinei com mãos trémulas e deixei tudo pronto: os papéis organizados, as contas pagas até onde pude.
Na manhã em que D. Rosa me encontrou sem vida na cama, a casa estava arrumada como se esperasse visitas importantes.
Dias depois, os meus filhos reuniram-se finalmente na sala onde tantas vezes brincaram em pequenos. O testamento foi lido em voz alta por um advogado desconhecido:
“Deixo esta casa à minha neta Sofia, na esperança de que aqui encontre alegria e amor verdadeiro. Aos meus filhos peço apenas compreensão e perdão.”
O silêncio foi pesado como chumbo.
Sofia chorou baixinho no canto da sala; Inês olhou para as mãos vazias; Ricardo saiu sem dizer palavra.
Agora pergunto-me: quantas Marias existem espalhadas por Portugal? Quantas mães e avós são lembradas apenas quando já é tarde demais? Será que algum dia aprendemos verdadeiramente a valorizar quem nos deu tudo?