Entre Silêncios e Gritos: O Peso das Escolhas de uma Mãe Portuguesa
— Não fui eu que te obriguei a casar, Sara! Não fui eu que te obriguei a ter um filho! Agora tens de aguentar as consequências das tuas escolhas! — gritei, a voz embargada, enquanto ela me olhava com os olhos marejados, sentada à mesa da cozinha, as mãos trémulas a brincar com a chávena de café frio.
O silêncio que se seguiu foi mais pesado do que qualquer discussão. O relógio da parede marcava sete da tarde, mas o tempo parecia suspenso entre nós. Eu via nela a menina que criei sozinha, depois que o António nos deixou para trás, mas também via uma mulher perdida, cansada demais para os seus vinte e dois anos.
Lembro-me de quando ela me disse que ia casar com o Rui. “Mãe, ele é diferente. Ele ama-me de verdade.” Eu quis acreditar, mas conhecia bem demais os sorrisos fáceis e as promessas vazias dos homens. Tentei avisá-la, tentei protegê-la, mas Sara sempre foi teimosa como eu. Talvez por isso nunca nos entendêssemos.
— Porque é que estás sempre a julgar-me? — perguntou ela, a voz quase um sussurro. — Achas que isto é fácil para mim? Achas que eu queria estar aqui, sozinha com um bebé nos braços enquanto o Rui desaparece todas as noites?
O meu coração apertou-se. Quis abraçá-la, dizer-lhe que tudo ia ficar bem, mas as palavras ficaram presas na garganta. Em vez disso, levantei-me e comecei a arrumar a loiça, como se o barulho dos pratos pudesse abafar a dor.
A verdade é que nunca quis que ela seguisse o mesmo caminho que eu. Sempre sonhei que estudasse, que viajasse, que tivesse uma vida diferente da minha. Mas aqui estávamos: duas mulheres presas ao mesmo destino, separadas por uma mesa de cozinha e por anos de mágoas acumuladas.
O Rui era um rapaz simpático no início. Trabalhava na oficina do pai dele, ali na vila. Mas depois do casamento, tudo mudou. As discussões começaram cedo — por dinheiro, por ciúmes, por nada e por tudo. Quando Sara engravidou, pensei que talvez as coisas melhorassem. Enganei-me.
— Não sei o que fazer, mãe — confessou ela, finalmente deixando cair as lágrimas. — Sinto-me tão sozinha…
Sentei-me ao lado dela e toquei-lhe na mão. Pela primeira vez em muito tempo, deixei cair a máscara de dureza.
— Eu também me senti assim quando o teu pai foi embora — disse-lhe baixinho. — Mas tu tens-me a mim. Sempre tiveste.
Ela encostou a cabeça ao meu ombro e chorou baixinho. Por um momento, voltámos a ser mãe e filha, sem culpas nem recriminações.
Mas a paz durou pouco. No dia seguinte, o Rui apareceu em casa bêbado. Gritou com Sara por causa do jantar frio e atirou um prato ao chão. O pequeno Tomás acordou a chorar no berço. Eu tentei intervir, mas ele empurrou-me para o lado.
— Isto é entre mim e a minha mulher! — berrou ele.
Sara ficou imóvel, os olhos arregalados de medo. Vi nela o reflexo da minha própria juventude: paralisada pelo medo de perder tudo, mas incapaz de reagir.
Depois daquela noite, insisti para que ela viesse viver comigo. “Não tens de aguentar isso”, disse-lhe. Mas ela hesitava — talvez por vergonha, talvez por esperança de que ele mudasse.
Os dias passaram arrastados. Sara emagreceu, Tomás chorava mais do que sorria e eu sentia-me impotente. A vila inteira murmurava: “A filha da Maria do Carmo não soube escolher…” As vizinhas olhavam-me de lado no mercado; algumas ofereciam conselhos não pedidos, outras apenas cochichavam.
Uma tarde, encontrei Sara sentada no jardim com Tomás ao colo. O sol batia-lhe no rosto pálido.
— Mãe… achas que sou fraca? — perguntou ela.
Sentei-me ao lado dela e olhei-a nos olhos.
— Não és fraca. És corajosa por admitires que precisas de ajuda. Eu devia ter dito isto antes…
Ela sorriu pela primeira vez em semanas.
Naquela noite, enquanto Tomás dormia entre nós na cama pequena do meu quarto, ouvi Sara rezar baixinho:
— Deus, dá-me força para recomeçar…
No dia seguinte, ela fez as malas. O Rui apareceu à porta para pedir desculpa, prometendo mudar. Mas desta vez Sara não vacilou.
— Vou para casa da minha mãe — disse-lhe com firmeza. — Preciso pensar em mim e no nosso filho.
Ele gritou, implorou, ameaçou. Mas eu fiquei ao lado dela. Pela primeira vez em muitos anos senti-me útil como mãe.
Os meses seguintes foram difíceis. Sara arranjou trabalho num café; eu ficava com Tomás durante o dia. As contas apertavam, mas havia paz em casa. Aos poucos, ela voltou a sorrir.
Um dia, enquanto lavávamos a roupa no tanque do quintal, ela perguntou:
— Achas que um dia vou ser feliz?
Olhei para ela e vi não só a minha filha mas também todas as mulheres da nossa família: avó Rosa, mãe solteira como eu; tia Lurdes, casada com um homem ausente; primas presas em relações sem amor.
— A felicidade não é um destino — respondi-lhe — é um caminho cheio de pedras e flores. O importante é não andares sozinha.
Sara abraçou-me com força.
Hoje olho para trás e pergunto-me: onde errei? Fui dura demais? Protegi pouco? Ou será que cada um tem mesmo de fazer o seu próprio caminho?
E vocês? Até onde deve ir o amor de uma mãe? Será que conseguimos mesmo proteger os nossos filhos das escolhas deles?