Entre Silêncios e Gritos: O Ano em Que Tudo Mudou

— Não aguento mais, Leonor! Não posso continuar a viver nesta casa como se nada tivesse acontecido! — gritou o António, batendo com a mão na mesa da cozinha, tão forte que os talheres saltaram.

Eu olhei para ele, sentindo o peito apertado, mas sem conseguir responder. O choro do pequeno Tomás ecoava pela casa, vindo do quarto da Inês. O António passou as mãos pelo cabelo grisalho, exausto. Eu sabia que ele estava à beira de explodir há semanas, mas nunca pensei que chegasse a este ponto.

— Se quiseres ir embora, vai — disse-lhe, tentando manter a voz firme. — Eu fico. Fico com a Inês e com o Tomás. Eles precisam de mim agora.

Ele olhou-me como se eu tivesse acabado de lhe dar uma bofetada. Mas não disse nada. Apenas saiu da cozinha e ouvi a porta do quarto fechar-se com estrondo.

Fiquei ali, sozinha, com o som do relógio de parede a marcar cada segundo da minha solidão. Lembrei-me do dia em que trouxemos a Inês para casa, há vinte e sete anos. Foi um parto difícil, quase morri. O António chorou quando a viu pela primeira vez. “É perfeita”, disse ele. E era mesmo. A nossa menina.

Nunca tivemos mais filhos. Não porque não quiséssemos, mas porque não podíamos. A Inês foi o nosso milagre tardio, e talvez por isso sempre tenha sentido uma responsabilidade desmedida por ela. Dei-lhe tudo o que podia: os melhores colégios, aulas de piano, viagens ao Algarve no verão. Mas será que lhe dei o mais importante? Será que lhe dei força para enfrentar o mundo?

A porta do quarto abriu-se devagar e a Inês apareceu no corredor, com o Tomás ao colo. Tinha olheiras fundas e o cabelo preso num coque desleixado. Olhou para mim como quem pede desculpa por existir.

— Mãe… — murmurou ela — Ele está a pensar em ir-se embora?

Aproximei-me dela e abracei-a. Senti o cheiro do leite materno misturado com lágrimas secas.

— Não te preocupes com isso agora, filha. O importante és tu e o Tomás.

Ela desfez-se em lágrimas no meu ombro. Eu queria dizer-lhe que tudo ia ficar bem, mas não consegui mentir-lhe. Porque eu própria já não sabia se ia mesmo.

O António passou os dias seguintes calado, saindo cedo para o trabalho e chegando tarde. Às vezes nem jantava connosco. Eu tentava manter a rotina: preparar sopa para a Inês, dar banho ao Tomás, lavar roupa até tarde da noite. Mas sentia-me a afundar num mar de cansaço e ressentimento.

Uma noite, enquanto embalava o Tomás na sala escura, ouvi vozes vindas do corredor.

— Não posso continuar assim! — era o António outra vez — A Inês destruiu a nossa vida! Tu só pensas nela!

— Ela é nossa filha! Está sozinha com um bebé! O Pedro abandonou-a! — respondi-lhe, sentindo as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos.

— E nós? Quando é que pensas em nós? Quando é que voltamos a ser marido e mulher?

Não soube responder-lhe. Porque já não sabia quem éramos nós dois. Só sabia que era mãe da Inês e avó do Tomás. Tudo o resto parecia ter desaparecido.

Os meses passaram devagar. A Inês começou a sair mais de casa, mas sempre com ar ausente. Uma vez ouvi-a ao telefone com uma amiga:

— Sinto-me feia… Nem sei quem sou agora… Só queria dormir uma noite inteira…

O Tomás chorava muito. Tinha cólicas e eu passava horas a andar pela casa com ele ao colo. Às vezes pensava: “Se eu tivesse tido mais filhos, talvez soubesse melhor como ajudar a minha filha agora”. Mas não tive.

No Natal desse ano, tentei juntar todos à mesa como antigamente. Fiz bacalhau à Brás, arroz doce e comprei um bolo-rei enorme na pastelaria da Dona Amélia. Mas o António mal tocou na comida e saiu antes das sobremesas.

A Inês ficou a olhar para mim:

— Achas que ele vai mesmo embora?

— Se for… — respirei fundo — Se for, nós ficamos bem na mesma. Eu cuido de ti e do Tomás.

Ela sorriu-me com tristeza:

— Não quero ser um peso para ti…

— Nunca serás um peso, filha.

Mas no fundo sentia-me esmagada pelo peso de tudo aquilo: as contas por pagar, as noites sem dormir, os silêncios do António, os olhares julgadores das vizinhas quando viam a Inês sozinha no parque infantil.

Uma tarde de fevereiro, o António fez as malas e saiu sem dizer adeus. Fiquei parada à porta, com o Tomás ao colo e a Inês sentada nas escadas a chorar baixinho.

Os dias seguintes foram um nevoeiro espesso de tarefas e lágrimas escondidas. A minha mãe ligava todos os dias:

— Tens de ser forte, Leonor! A tua filha precisa de ti!

Mas quem cuidava de mim?

Comecei a trabalhar mais horas na pastelaria para pagar as contas. A Inês tentou arranjar um part-time numa loja de roupa, mas faltava-lhe energia até para sair da cama alguns dias.

Uma noite, depois de adormecer o Tomás, sentei-me ao lado dela no sofá.

— Sabes… — disse-lhe — Quando eras pequena eu achava que te podia proteger de tudo. Mas agora vejo que há dores que só tu podes curar.

Ela olhou para mim com os olhos vermelhos:

— Achas que algum dia vou voltar a ser eu?

Abracei-a com força:

— Vais ser ainda melhor do que eras antes.

Na primavera, começámos a sair juntas para passeios curtos à beira-rio. O Tomás ria-se ao ver os patos na água e pela primeira vez em meses vi um brilho nos olhos da Inês.

Certa tarde, enquanto tomávamos café numa esplanada, ela disse-me:

— Mãe… Obrigada por não me teres deixado cair.

Sorri-lhe:

— É isso que as mães fazem.

Mas à noite chorei sozinha na cozinha. Senti falta do António, das conversas longas depois do jantar, das mãos dele nas minhas quando achávamos que tudo era possível.

No verão, a Inês começou a arranjar-se melhor: cortou o cabelo curto, pintou as unhas de vermelho vivo e voltou a sorrir quando se olhava ao espelho.

Um dia trouxe um rapaz lá a casa — o Miguel — colega da loja onde trabalhava agora a tempo inteiro.

O Tomás correu para ele como se já o conhecesse há anos.

Vi nos olhos da minha filha uma esperança tímida a renascer.

No aniversário do Tomás fizemos uma festa pequena no jardim: balões coloridos, bolo de chocolate caseiro e gargalhadas pela primeira vez em muito tempo.

Quando todos se foram embora e fiquei sozinha na cozinha cheia de pratos por lavar, sentei-me à mesa e olhei pela janela para o céu cor-de-rosa do entardecer.

Pensei em tudo o que tinha perdido naquele ano: o marido, a paz de espírito, as certezas antigas. Mas também pensei no que tinha ganho: uma filha mais forte, um neto cheio de vida e uma coragem nova dentro de mim.

Será que fiz bem em escolher ficar? Será que é possível reconstruir uma família quando tudo parece desmoronar? E vocês… já tiveram de escolher entre o amor próprio e o amor pelos outros?