Entre o Silêncio e o Grito: O Dia em Que Vi o Meu Mundo Rachar
— Quem é esta mulher, Miguel? — perguntei, a voz tremendo, enquanto lhe mostrava a fotografia no ecrã do telemóvel. O meu dedo parou sobre a imagem como se pudesse, de alguma forma, impedir que aquela cena existisse. O lago ao fundo, as luzes penduradas, os colegas de trabalho do Miguel todos sorridentes, e ele… ele ao lado dela. Não era só a proximidade física. Era o modo como o corpo dele se inclinava para ela, como se o mundo inteiro tivesse desaparecido à volta deles.
Miguel olhou para mim, primeiro confuso, depois defensivo. — É a Marta. Entrou há pouco tempo na empresa. Estás a exagerar.
Mas eu não estava a exagerar. O meu coração sabia antes de mim. Havia meses que sentia o afastamento dele: os jantares silenciosos, as desculpas para chegar tarde, o cheiro diferente na roupa, quase imperceptível, mas ali. E agora, aquela fotografia era a prova de que algo tinha mudado. Não era só ciúme. Era medo. Era perda.
Lembro-me de como tudo começou entre nós. Eu e o Miguel conhecemo-nos na faculdade em Coimbra. Ele era o rapaz das piadas fáceis e do sorriso aberto; eu, a rapariga reservada que preferia livros a festas. Apaixonámo-nos devagar, entre cafés e passeios à beira do Mondego. Casámos cedo demais, talvez — diziam os nossos pais — mas acreditávamos que o amor bastava.
Os anos passaram depressa. Vieram os filhos, a casa nos arredores de Lisboa, as contas para pagar, as rotinas que nos engoliram sem darmos por isso. Eu tornei-me professora primária numa escola pública; ele subiu na empresa de consultoria. Sempre achei que éramos felizes à nossa maneira. Mas agora percebo que a felicidade também se desgasta.
— Não me mintas, Miguel — insisti, sentindo as lágrimas ameaçarem cair. — Não é só uma colega.
Ele suspirou fundo e desviou o olhar. — Não aconteceu nada…
— Ainda — interrompi-o. — Mas vai acontecer? Ou já aconteceu e não tens coragem de me dizer?
O silêncio dele foi pior do que qualquer resposta.
Nessa noite não dormi. Fiquei sentada na sala, enrolada numa manta, a ouvir o tic-tac do relógio da parede e os carros ao longe na autoestrada. Pensei nos nossos filhos — a Inês com 12 anos, sempre tão sensível; o Tiago com 8, ainda inocente demais para perceber as fissuras no mundo dos adultos. Como lhes explicaria que o pai podia já não amar a mãe? Como se explica a uma criança que o amor pode acabar?
No dia seguinte fui trabalhar como se nada fosse. Os miúdos na escola notaram que eu estava diferente.
— Professora Ana, está triste? — perguntou-me a Matilde, uma das minhas alunas preferidas.
Sorri-lhe como pude. — Só um bocadinho cansada, querida.
Mas por dentro sentia-me a desmoronar.
À noite tentei falar com o Miguel outra vez. Ele estava fechado no escritório de casa, fingindo trabalhar. Bati à porta.
— Podemos conversar?
Ele não respondeu logo. Finalmente disse:
— Ana, não sei o que queres que eu diga.
— Quero a verdade. Só isso.
Ele levantou-se da cadeira e passou as mãos pelo cabelo.
— Sinto-me perdido — confessou finalmente. — Sinto-me velho, cansado… E ela faz-me sentir vivo outra vez.
Essas palavras foram como facas. Fiquei ali parada, sem saber se gritava ou chorava ou simplesmente fugia dali para sempre.
— E eu? Eu não te faço sentir nada? — perguntei num sussurro.
Ele não respondeu.
Os dias seguintes foram um nevoeiro. Tentei manter as rotinas por causa dos miúdos: preparar pequenos-almoços, ajudar nos trabalhos de casa, fingir normalidade quando tudo em mim gritava por dentro. A minha mãe ligava todos os dias.
— Estás bem, filha?
— Estou — mentia eu.
Mas ela sabia ler nas entrelinhas da minha voz.
Uma noite fui dormir à casa dela em Almada. Precisava de colo materno, mesmo aos 38 anos.
— O Miguel anda estranho há meses — disse-lhe eu enquanto bebíamos chá na cozinha antiga onde cresci.
Ela pousou a mão sobre a minha.
— Os homens às vezes perdem-se pelo caminho. Mas tu tens de decidir se queres lutar ou deixar ir.
Lutar? Como se luta contra uma sombra? Contra um vazio?
No fim-de-semana seguinte decidi confrontar o Miguel de vez. Esperei que os miúdos fossem dormir e sentei-me à mesa da cozinha com ele.
— Não posso continuar assim — disse-lhe. — Ou tentamos salvar isto ou cada um segue o seu caminho.
Ele olhou para mim com olhos cansados.
— Não sei se consigo voltar atrás, Ana…
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
— Então é isso? Desistes assim? Depois de tudo?
Ele baixou a cabeça.
— Desculpa…
As semanas seguintes foram feitas de silêncios pesados e discussões sussurradas para não acordar as crianças. A Inês começou a perguntar porque é que o pai dormia tantas vezes no sofá; o Tiago desenhava sempre três casas nos trabalhos da escola: uma para mim, outra para ele e outra para o pai.
A família do Miguel ficou do nosso lado — ou melhor, do lado dele. A sogra ligava-me a dizer que eu devia ser mais compreensiva; a cunhada mandava mensagens passivo-agressivas sobre “mulheres modernas que só pensam nelas”.
Senti-me sozinha como nunca antes na vida.
Um dia encontrei a Marta no supermercado do bairro. Ela estava com um sorriso tímido e um saco de compras na mão.
— Olá… és a Ana, não és?
Assenti em silêncio.
— Eu não queria magoar ninguém…
Olhei-a nos olhos e vi ali alguém tão perdido quanto eu.
— Às vezes não é uma questão de querer ou não querer — disse-lhe baixinho. — É só uma questão de escolhas erradas no momento errado.
Ela assentiu e afastou-se rapidamente pelos corredores.
O divórcio foi inevitável. Os miúdos ficaram comigo durante a semana; ao fim-de-semana iam para casa do pai e da Marta (sim, ela acabou por ir viver com ele). A casa ficou demasiado grande e demasiado vazia. Vendi-a e fui viver para um apartamento mais pequeno em Setúbal.
Os meus pais ajudaram-me muito; os amigos também. Mas havia noites em que só queria desaparecer dentro das minhas próprias lágrimas.
Com o tempo aprendi a viver sozinha. Descobri prazeres simples: ler um livro inteiro sem interrupções; ir ao cinema sozinha; passear à beira-mar ao domingo de manhã sem pressa nem destino.
Os miúdos adaptaram-se melhor do que eu esperava. A Inês tornou-se mais fechada; o Tiago mais carente. Mas juntos fomos reconstruindo uma nova rotina, uma nova família possível dentro dos escombros da antiga.
Às vezes ainda vejo fotografias antigas e pergunto-me onde foi que nos perdemos realmente. Terá sido culpa minha? Dele? Ou simplesmente da vida?
Hoje olho para trás com menos dor e mais compreensão. Sei que sobrevivi ao pior dos meus medos: ser deixada para trás sem aviso prévio. E sobrevivi porque tive de aprender a gostar de mim outra vez.
Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres vivem histórias como a minha em silêncio? Quantas têm coragem de recomeçar quando tudo parece perdido? E vocês… já sentiram o vosso mundo rachar assim de repente?