Entre o Silêncio e o Dever: O Peso de Ser Filha de Vitória

— Achas mesmo que tens escolha? — a voz da minha mãe ecoou pela cozinha, cortante como sempre. Ela nem sequer olhou para mim, ocupada a mexer o chá como se a colher pudesse dissolver anos de mágoas. — És minha filha. Tens obrigação.

Fiquei ali, parada, com as mãos trémulas e o coração apertado. Não era a primeira vez que ouvia aquelas palavras, mas naquele dia soaram diferentes. Talvez porque agora ela estava velha, frágil, e eu era a única pessoa que lhe restava. Ou talvez porque, finalmente, percebi que nunca deixaria de ser aquela menina que ansiava por um gesto de carinho da mãe.

Chamo-me Mariana e cresci num apartamento frio em Almada, onde o silêncio era mais pesado do que o cheiro a café queimado nas manhãs de domingo. O meu pai morreu cedo — tinha eu sete anos — e desde então fui apenas eu e a minha mãe, Vitória. Ela nunca chorou à minha frente. Nem no funeral. Lembro-me de olhar para ela, à espera de um abraço, mas só encontrei olhos secos e uma mão firme no meu ombro: “Agora tens de ser forte.”

A força dela era uma muralha. Cresci a bater contra ela todos os dias. As outras mães sorriam nos portões da escola, mas a minha vinha buscar-me com pressa, sempre com um ar aborrecido. Quando lhe mostrava os desenhos ou as notas da escola, ela limitava-se a dizer: “É o teu dever.” Nunca ouvi um “estou orgulhosa de ti”.

A adolescência foi uma guerra fria. Eu queria sair com amigos, ela queria que eu estudasse. Quando tentei falar-lhe sobre o primeiro rapaz de quem gostei, ela riu-se: “Essas coisas não interessam.” Quando lhe contei que queria estudar Belas-Artes em Lisboa, fez questão de me lembrar que isso era “coisa de gente inútil”. Acabei por estudar contabilidade, porque era prático e porque já não tinha forças para lutar.

Os anos passaram e fui-me afastando. Arranjei trabalho num escritório pequeno em Lisboa, aluguei um quarto numa casa partilhada e só ia a Almada quando não podia evitar. As chamadas eram curtas e cheias de silêncios desconfortáveis. Ela nunca perguntava por mim — só queria saber se eu podia ir buscar-lhe medicamentos ou pagar uma conta.

Quando fiz trinta anos, tentei confrontá-la. Estávamos sentadas na sala, ela a ver a novela e eu a olhar para as mãos.

— Mãe… alguma vez gostaste mesmo de mim?

Ela nem desviou os olhos do ecrã.

— Gostar? Isso é coisa de filmes. Eu dei-te casa e comida. Isso é amor.

Naquele dia chorei sozinha no autocarro de volta a Lisboa. Senti-me órfã de mãe viva.

Agora, vinte anos depois, ela está sentada à mesa da cozinha, mais pequena do que me lembro, mas com a mesma voz dura.

— Preciso que me leves ao hospital amanhã — diz ela sem emoção. — E depois vais ter de ficar cá uns dias. O médico disse que não posso estar sozinha.

Respiro fundo. Sinto o peso do passado a esmagar-me o peito.

— Mãe… — começo eu, mas ela interrompe-me logo.

— Não venhas com histórias. O passado já passou. Agora é tudo igual.

Igual? Como pode ser igual? Como pode ela achar que todos os anos em que me ignorou ou magoou desapareceram só porque agora precisa de mim?

Levanto-me devagar e vou até à janela. Lá fora, o Tejo brilha ao longe e as gaivotas gritam como se soubessem dos meus segredos.

Lembro-me do Natal em que fiquei sozinha porque ela preferiu ir jantar com as colegas do centro de dia. Lembro-me dos aniversários esquecidos, das palavras duras quando perdi o emprego, do silêncio quando lhe disse que estava deprimida.

Mas também me lembro da primeira vez que a vi chorar — há dois meses, quando caiu na rua e ficou horas à espera que alguém a ajudasse. Quando cheguei ao hospital, ela agarrou-me a mão com força e murmurou: “Não me deixes.”

Foi nesse momento que percebi: por mais fria que tenha sido comigo, agora sou eu quem tem poder sobre ela. E isso assusta-me.

Volto para a mesa e olho-a nos olhos.

— Porque achas que tenho obrigação? — pergunto baixinho.

Ela encolhe os ombros.

— Porque és minha filha. E porque ninguém mais vai fazer isto por mim.

O silêncio instala-se entre nós como uma parede invisível. Sinto raiva, pena e culpa tudo ao mesmo tempo.

Naquela noite não durmo. Fico a pensar em todas as famílias felizes que vejo nos anúncios da televisão e pergunto-me se alguma vez terei direito a isso. Penso no tempo perdido, nas palavras não ditas, nos abraços recusados.

No dia seguinte levo-a ao hospital. Ajudo-a a vestir-se, seguro-lhe no braço enquanto desce as escadas devagarinho. No carro, ela reclama do trânsito e do calor. No hospital, resmunga com as enfermeiras. Mas quando lhe dão alta e voltamos para casa, vejo-a olhar para mim com uma expressão estranha — quase vulnerável.

— Obrigada — diz ela finalmente, num sussurro quase imperceptível.

Fico sem saber o que responder. Aquele “obrigada” pesa mais do que todos os silêncios do passado.

Durante os dias seguintes fico em casa dela. Faço-lhe sopa, dou-lhe os medicamentos, ajudo-a a tomar banho. À noite sento-me no sofá e vejo televisão ao lado dela. Às vezes apanho-a a olhar para mim como se quisesse dizer algo importante, mas nunca diz nada.

Uma tarde encontro uma caixa velha no fundo do armário dela. Lá dentro estão cartas que escrevi quando era criança — desenhos toscos com corações e frases como “gosto muito de ti mamã”. Estão todas guardadas com cuidado.

Sento-me no chão e começo a chorar baixinho. Afinal, talvez tenha havido amor — só não foi o amor que eu precisava.

Quando ela acorda da sesta e me vê com as cartas na mão, fica vermelha e vira a cara.

— Não faças caso disso — diz ela secamente.

Mas naquele momento sinto uma pequena fissura na muralha dela.

Os dias passam devagar. A saúde dela melhora aos poucos e eu começo a preparar-me para voltar à minha vida em Lisboa. Na véspera da minha partida, sentamo-nos à mesa para jantar em silêncio.

De repente ela pousa os talheres e olha para mim com olhos cansados.

— Sei que não fui boa mãe — diz ela num fio de voz. — Mas fiz o melhor que sabia fazer.

Fico sem palavras. Queria ouvir um pedido de desculpa ou uma declaração de amor, mas percebo que isto é tudo o que ela consegue dar-me.

Abraço-a devagarinho. Pela primeira vez sinto-a tremer nos meus braços.

No comboio de regresso a Lisboa olho pela janela e penso em tudo o que ficou por dizer entre nós. Será possível perdoar sem esquecer? Será obrigação cuidar de quem nunca cuidou de nós? Ou será este ciclo interminável apenas parte do destino das famílias portuguesas?

E vocês? O que fariam no meu lugar? Conseguiriam cuidar de alguém que vos magoou tanto? Ou há feridas que nunca saram?