Entre o Fim e o Recomeço: A História de Sofia e Miguel

— Miguel, não aguento mais este silêncio! — gritei, a voz embargada, enquanto segurava a pequena Matilde ao colo. Ela chorava há horas, febril, e eu já não sabia se chorava por ela ou por mim. O Tomás, com apenas três anos, puxava-me pela saia, pedindo atenção. E tu, Miguel, sentado no sofá, olhos fixos no telemóvel, como se tudo isto fosse apenas ruído de fundo.

— Sofia, por favor… — murmuraste sem levantar os olhos. — Preciso de acabar este relatório. O cliente espera amanhã.

Senti um nó na garganta. Era sempre assim. O trabalho primeiro, nós depois — ou nunca. Lembrei-me dos tempos em que rias das minhas piadas parvas, em que dançávamos na cozinha ao som da rádio comercial. Agora, só havia cansaço e distância.

A Matilde tossiu forte. O medo apertou-me o peito. Desde que nasceu, há dez meses, as idas ao hospital tornaram-se rotina. Bronquiolite, disseram os médicos. E eu? Eu tornei-me uma sombra da mulher que era. Olheiras fundas, cabelo apanhado à pressa, roupa manchada de leite e lágrimas.

Naquela noite, depois de adormecer as crianças, sentei-me à mesa da cozinha. O relógio marcava duas da manhã. Miguel entrou, finalmente livre do computador.

— Sofia… — começou ele, hesitante.

— Achas que isto é vida? — interrompi. — Achas mesmo que podemos continuar assim?

O silêncio caiu entre nós como uma sentença. Ele sentou-se à minha frente, esfregando as têmporas.

— Não sei… — confessou. — Sinto-me perdido. O negócio está por um fio, os clientes exigem cada vez mais… E tu… tu pareces sempre zangada comigo.

— Não estou zangada — menti. — Estou sozinha.

Miguel baixou a cabeça. Pela primeira vez em meses, vi-lhe as lágrimas nos olhos.

— Tenho medo de te perder — sussurrou.

Aquelas palavras ficaram a ecoar-me na cabeça durante dias. Mas o quotidiano não perdoa: fraldas para mudar, sopas para fazer, febres para medir. A minha mãe ligava todos os dias:

— Sofia, tens de pensar em ti! Não podes viver só para eles! — dizia ela, sempre crítica do meu casamento desde o início.

O meu pai era mais pragmático:

— Se não estão bem juntos, cada um segue o seu caminho. Não há vergonha nenhuma nisso.

Mas eu não queria desistir. Ou queria? Às vezes fantasiava com a liberdade: dormir uma noite inteira sem interrupções, tomar banho sem pressa, sair para um café sem avisar ninguém.

Numa tarde de domingo, enquanto Miguel levava o Tomás ao parque para lhe dar algum tempo sozinha com a Matilde (que dormia finalmente), sentei-me no sofá e chorei tudo o que tinha guardado durante meses. Peguei no telemóvel e escrevi uma mensagem à minha melhor amiga, Inês:

“Achas que devo divorciar-me? Sinto-me miserável.”

A resposta veio rápida:

“Sofia, só tu sabes o que aguentas ou não. Mas lembra-te: ninguém é feliz todos os dias. Pergunta-te se ainda há amor aí dentro.”

Havia? Olhei para uma foto antiga nossa na estante: Miguel a segurar-me ao colo na praia da Nazaré, ambos a rir como crianças. Senti saudades daquela leveza.

Quando Miguel voltou do parque, encontrou-me ainda sentada no sofá.

— Precisamos de ajuda — disse-lhe sem rodeios. — Não quero continuar assim. Nem contigo nem sem ti.

Ele assentiu devagar.

— Aceito ir a terapia de casal — respondeu. — Quero tentar… por nós e pelos miúdos.

As sessões começaram na semana seguinte com a Dra. Teresa, uma psicóloga calma e de voz suave. Nas primeiras sessões só chorámos e atirámos culpas um ao outro:

— Nunca estás presente! — acusava eu.

— E tu só sabes reclamar! — devolvia ele.

Mas aos poucos fomos escavando mais fundo: os medos dele de falhar como provedor; o meu ressentimento por sentir que carregava tudo sozinha; as expectativas irrealistas que ambos tínhamos criado sobre o casamento perfeito.

Uma noite, depois de uma dessas sessões particularmente duras, Miguel surpreendeu-me:

— Lembras-te quando prometemos que nunca iríamos dormir zangados?

Sorri tristemente.

— Já nem me lembro da última vez que dormimos juntos na mesma cama…

Ele aproximou-se e abraçou-me com força. Pela primeira vez em muito tempo deixei-me ficar ali, sem resistir.

Os meses seguintes foram uma montanha-russa: recaídas em discussões antigas, pequenas vitórias como um jantar a dois improvisado na varanda enquanto as crianças dormiam. Começámos a dividir tarefas: Miguel passou a dar banho ao Tomás todas as noites; eu permiti-me pedir ajuda à minha mãe sem sentir culpa.

Mas nem tudo foi fácil. Houve dias em que pensei mesmo em desistir. Numa dessas manhãs cinzentas de inverno, Matilde voltou a ficar doente e precisei levar ambos ao hospital sozinha porque Miguel estava numa reunião decisiva para salvar a empresa.

No corredor frio das urgências pediatrais do Hospital de Santa Maria, olhei para as outras mães exaustas e perguntei-me se todas sentiriam esta solidão esmagadora.

Quando finalmente cheguei a casa com Matilde medicada e Tomás adormecido ao colo, encontrei Miguel sentado à mesa da cozinha com a cabeça entre as mãos.

— Falhei outra vez… — murmurou ele quando me viu entrar.

Sentei-me ao lado dele e toquei-lhe na mão.

— Estamos a tentar… Isso já é alguma coisa.

Naquela noite dormimos juntos pela primeira vez em meses. Não foi mágico nem perfeito; foi real e imperfeito como nós.

Hoje escrevo esta história enquanto Matilde brinca no tapete e Tomás desenha monstros coloridos na parede da sala (vou ralhar-lhe daqui a pouco). Miguel está na cozinha a preparar o jantar — arroz de pato à moda da mãe dele — e eu sinto uma paz frágil mas verdadeira.

Não sei se vamos durar para sempre. Talvez amanhã voltemos a discutir por coisas pequenas ou grandes demais para caberem num só coração cansado. Mas sei que tentámos quando era mais fácil desistir.

Pergunto-me: quantos casais desistem antes de tentar verdadeiramente? E vocês? Acham que vale sempre a pena lutar pelo amor ou há momentos em que é melhor deixar ir?