Entre o Amor e o Dinheiro: O Dilema de uma Nora Portuguesa
— Naomi, precisamos conversar. — A voz da Dona Lurdes cortou o silêncio da sala como uma faca afiada. O relógio marcava quase dez da noite e a chuva batia forte nas janelas do apartamento em Almada. Eu sabia que aquela frase nunca era prenúncio de coisa boa. O meu marido, Rui, estava no quarto a adormecer a nossa filha Leonor, e eu fiquei sozinha com a minha sogra, sentada no sofá de veludo verde que ela tanto estimava.
O olhar dela era firme, quase duro. Senti um frio na barriga. Desde que casei com o Rui, há sete anos, sempre tentei agradar à Dona Lurdes. Ela nunca me aceitou completamente — talvez por eu ser de uma família mais modesta, talvez por não corresponder às expectativas dela para o filho único. Mas nunca imaginei que aquela noite mudaria tudo.
— Sabes que esta casa é da família há três gerações — começou ela, ajeitando a echarpe nos ombros. — O teu sogro deixou tudo para o Rui. Mas agora as coisas estão diferentes…
Fiquei sem saber o que responder. A casa era grande, antiga, cheia de memórias e de segredos. Eu sabia que o Rui tinha dificuldades em pagar o IMI e as pequenas obras que a casa exigia todos os anos. Mas nunca falámos abertamente sobre vender ou transferir a propriedade.
— O que quer dizer com isso, Dona Lurdes? — perguntei, tentando manter a voz estável.
Ela suspirou fundo e olhou-me nos olhos:
— Quero propor uma coisa. Se transferirem a casa para o nome do meu neto, o Tomás, ainda em vida, evitam muitos impostos no futuro. E eu posso ajudar-vos com algum dinheiro agora, para as obras e para as vossas dívidas.
Senti um nó na garganta. O Tomás era o nosso filho mais velho, tinha apenas dez anos. Transferir a casa para o nome dele? E se algo corresse mal? E se o Rui e eu nos separássemos? E se a Dona Lurdes tivesse outros planos?
— Não sei se é boa ideia… — murmurei, mas ela interrompeu-me.
— Naomi, pensa bem. Eu só quero proteger a família. Não quero que esta casa vá parar às mãos de estranhos ou do Estado.
Nesse momento, o Rui entrou na sala, com um ar cansado. Percebeu logo que algo se passava.
— O que se passa aqui? — perguntou ele, olhando de mim para a mãe.
— A tua mãe quer transferir a casa para o nome do Tomás — respondi, tentando não soar demasiado alarmada.
O Rui ficou calado durante uns segundos longos demais. Depois sentou-se ao meu lado e passou a mão pelo cabelo.
— Mãe… isso é muito complicado. E se algum dia precisarmos de vender? Ou se acontecer alguma coisa ao Tomás?
A Dona Lurdes levantou-se abruptamente.
— Vocês não percebem! Eu só quero evitar problemas! Se não querem aceitar a minha ajuda, digam já!
O silêncio caiu pesado sobre nós. Eu sentia-me dividida entre a gratidão pela preocupação dela e o receio de estar a cair numa armadilha financeira e emocional.
Naquela noite quase não dormi. O Rui virou-se para mim na cama:
— Achas que ela está a ser sincera?
— Não sei… — respondi baixinho. — Mas sinto que há mais qualquer coisa por trás disto.
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. A Dona Lurdes deixou de falar connosco durante uma semana inteira. O Tomás percebeu que algo não estava bem e começou a perguntar porque é que a avó já não vinha buscar-lo à escola.
No trabalho, mal conseguia concentrar-me. Os meus colegas notaram o meu ar ausente. A minha chefe, Dona Teresa, chamou-me ao gabinete:
— Naomi, está tudo bem em casa?
Quase chorei ali mesmo. Contei-lhe por alto o que se passava e ela disse-me:
— Não te deixes pressionar. As famílias podem ser muito complicadas quando há dinheiro ao barulho.
Nessa noite, decidi falar com o Rui abertamente.
— Temos de decidir juntos — disse-lhe. — Não quero que isto destrua a nossa família.
Ele assentiu.
— Eu sei… mas sinto-me preso entre ti e a minha mãe. Ela sempre foi controladora… mas agora parece desesperada.
Fomos falar com um advogado amigo do Rui, o Dr. Mário. Ele explicou-nos os riscos legais de transferir uma propriedade para o nome de uma criança menor: possíveis problemas fiscais, dificuldades em vender ou hipotecar no futuro, questões de tutela caso algo nos acontecesse…
Saímos do escritório ainda mais confusos.
No fim-de-semana seguinte, fomos almoçar à casa da Dona Lurdes. O ambiente estava tenso. Ela serviu-nos bacalhau com natas em silêncio. No fim da refeição, chamou-me à cozinha enquanto os miúdos brincavam na sala.
— Naomi… desculpa se fui dura contigo — disse ela finalmente, com os olhos marejados de lágrimas. — Só tenho medo de perder tudo aquilo por que lutei a vida inteira.
Nesse momento vi-a como nunca antes: uma mulher envelhecida pelo tempo e pelo medo do futuro, agarrada às paredes da casa como se fossem parte dela própria.
Abracei-a sem saber muito bem porquê.
— Vamos encontrar uma solução juntas — prometi-lhe.
Mas nada ficou resolvido naquele dia. O Rui continuava dividido entre mim e a mãe; eu sentia-me cada vez mais sozinha; os miúdos começaram a discutir entre si por pequenas coisas; até os vizinhos começaram a comentar que havia problemas na família Pereira.
Uma noite ouvi o Rui ao telefone com alguém:
— Não posso continuar assim… ela não percebe…
Senti um aperto no peito. Será que ele falava de mim? Ou da mãe?
No dia seguinte confrontei-o:
— Rui, estamos a afastar-nos um do outro por causa disto tudo…
Ele olhou-me nos olhos:
— Eu amo-te Naomi… mas sinto-me sufocado entre ti e a minha mãe. Não sei como sair deste buraco.
Chorei baixinho nessa noite enquanto ele dormia ao meu lado.
Passaram-se semanas até conseguirmos sentar-nos todos à mesa novamente: eu, Rui, Dona Lurdes e até os miúdos. Falámos abertamente dos medos de cada um: do medo dela perder a casa; do nosso medo de ficar presos a uma decisão irreversível; do medo dos miúdos verem os pais separados por causa de dinheiro.
No fim decidimos não transferir nada para já. Procurámos ajuda financeira para as obras e combinámos reunir todos os anos para rever a situação da casa juntos.
A relação com Dona Lurdes melhorou aos poucos — mas nunca voltou a ser igual. O Rui e eu aprendemos a falar mais abertamente sobre dinheiro e família; os miúdos cresceram sabendo que nem sempre as famílias são perfeitas.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas famílias portuguesas já não passaram por dilemas como este? Quantos silêncios guardam segredos e mágoas à espera de serem resolvidos?
E vocês? Já sentiram o peso das expectativas familiares sobre os vossos ombros? Até onde iriam para proteger quem amam sem perderem a vossa própria paz?