Entre o Amor e o Abismo: O Preço de uma Escolha
— Não faças isso, Samantha. Por favor, não publiques nada — suplicou a voz trémula do outro lado da linha. Era o Tristan, a respiração dele entrecortada, como se cada palavra lhe custasse a alma.
Fechei os olhos, sentindo o peso do telemóvel na mão. O meu coração batia descompassado, não só pela adrenalina do momento, mas pela dúvida que me corroía por dentro. Tinha começado tudo como uma brincadeira, uma experiência social para o meu blogue — “Corações à Prova” — onde testava a fidelidade dos homens portugueses. Nunca pensei que me fosse envolver tanto. Nunca pensei que fosse encontrar alguém como o Tristan.
Conheci-o numa tarde chuvosa no Chiado, quando decidi abordar desconhecidos para mais um artigo. Ele estava sentado sozinho na esplanada, a olhar para o vazio com um café frio à frente. Sentei-me ao lado dele, sorrindo de forma casual.
— Desculpe incomodar, mas acredita no amor à primeira vista? — perguntei, fingindo timidez.
Ele sorriu, um sorriso triste, e respondeu:
— Não sei… Acho que já acreditei. Agora acredito mais em segundas oportunidades.
A conversa fluiu com uma naturalidade assustadora. Falámos de tudo: música portuguesa, saudade, sonhos adiados. Só mais tarde reparei na aliança discreta no dedo dele. O meu coração apertou-se — era casado. Mas a curiosidade falou mais alto.
Durante dias trocámos mensagens. Ele era atencioso, divertido, mas havia sempre um tom de melancolia nas palavras dele. Até que um dia arrisquei:
— E se nos encontrássemos para jantar?
Houve silêncio do outro lado. Depois veio a resposta:
— Não devia… Mas quero.
Foi aí que percebi que tinha ido longe demais. A minha experiência social estava prestes a transformar-se num drama real. Senti-me culpada, mas também fascinada pelo poder que tinha nas mãos.
No jantar, Tristan confessou:
— O meu casamento está por um fio. A minha mulher já não olha para mim da mesma forma. Sinto-me invisível em casa.
Olhei para ele, tentando manter a distância emocional que sempre impus nestas experiências. Mas era impossível. Vi nele o reflexo de tantas pessoas que conheci — perdidas, à procura de algo que nem sabem nomear.
Depois daquela noite, escrevi o artigo. Não mencionei nomes, mas as pistas eram óbvias para quem conhecesse Tristan. O texto tornou-se viral em poucas horas. Comentários choveram: uns aplaudiam-me por expor a hipocrisia masculina; outros acusavam-me de destruir famílias por likes.
Dois dias depois, recebi a chamada dele.
— Samantha… Por favor… A minha mulher viu tudo. Estou a dormir no sofá da minha mãe. Perdi tudo.
A voz dele ecoava na minha cabeça enquanto lia os comentários cruéis online:
“Bem feito! Quem trai merece ser exposto!”
“E se fosse contigo? Gostavas?”
A minha caixa de mensagens encheu-se de ameaças e insultos. Amigos afastaram-se. A minha própria mãe ligou-me:
— Samantha, o que é que te passou pela cabeça? Isto não é jornalismo, é crueldade!
Senti-me sozinha pela primeira vez em anos. O blogue era tudo para mim — a minha forma de lutar contra as injustiças que via à minha volta desde pequena, quando via o meu pai trair a minha mãe e ninguém fazia nada. Mas agora questionava-me: será que estava mesmo a lutar por justiça ou só queria vingança?
Uma noite, fui ao supermercado e encontrei a mulher do Tristan, a Ana Margarida. Ela olhou para mim com olhos vermelhos de tanto chorar.
— Espero que estejas satisfeita — disse ela, a voz fria como gelo. — Não só destruíste o meu casamento como me fizeste sentir uma idiota perante toda a gente.
Tentei pedir desculpa, mas ela virou-me as costas antes que pudesse dizer uma palavra.
Voltei para casa e sentei-me no sofá escuro da sala. O silêncio era ensurdecedor. Peguei no portátil e comecei a escrever uma carta aberta:
“Peço desculpa a todos os que magoei. Nunca foi minha intenção destruir vidas reais em nome de uma causa virtual…”
Mas as palavras soavam vazias até para mim.
Os dias seguintes foram um tormento. Recebi mensagens de outras mulheres agradecendo-me por terem descoberto traições dos seus maridos através do meu blogue. Outras insultavam-me sem piedade.
O Tristan desapareceu das redes sociais. Ouvi dizer que foi viver para o Porto com um irmão distante. Ana Margarida pediu o divórcio e mudou-se para casa dos pais em Cascais.
A minha família recusava-se a falar comigo. O meu irmão mais novo enviou-me uma mensagem curta:
— Espero que estejas orgulhosa.
Comecei a questionar tudo: valia mesmo a pena expor as fraquezas humanas assim? Ou será que todos merecemos uma segunda oportunidade?
Numa noite de insónia, recebi uma mensagem anónima:
“E se fosses tu? E se alguém expusesse os teus segredos?”
Chorei até adormecer.
Hoje olho para trás e vejo uma sucessão de escolhas erradas mascaradas de coragem. Perdi amigos, perdi família e perdi o respeito por mim própria.
Mas será que aprendi alguma coisa? Ou será que estamos todos condenados a repetir os mesmos erros em nome de uma justiça cega?
Se pudesses escolher entre expor uma verdade dolorosa ou proteger alguém do sofrimento, o que farias? Até onde irias por aquilo em que acreditas?