Entre Máquinas e Silêncios: O Preço da Eficiência
— Não percebes, Miguel? Não é só sobre lavar a loiça ou passar a ferro! — gritava a Ana, com os olhos marejados de lágrimas, enquanto eu, de comando na mão, tentava programar o aspirador robô para mais uma ronda pela sala.
O som mecânico do aparelho misturava-se com a tensão no ar. Eu queria responder, mas as palavras não me saíam. Sentia-me encurralado entre o desejo de eficiência e o medo de enfrentar as emoções que ela despejava sobre mim. Afinal, não era para isso que serviam as máquinas? Para nos poupar ao esforço, ao desgaste, à rotina?
A Ana saiu de casa naquela noite. O silêncio que ficou foi ensurdecedor. Sentei-me no sofá, rodeado de aparelhos: o frigorífico inteligente apitava porque alguém deixara a porta aberta, o assistente virtual sugeria uma playlist relaxante, e o forno piscava, pronto para cozinhar sozinho. Tudo à minha volta funcionava na perfeição — menos eu.
Lembro-me de quando tudo começou. Sempre fui fascinado por tecnologia. Desde miúdo, em Braga, desmontava rádios velhos do meu avô para perceber como funcionavam. Quando comecei a trabalhar como engenheiro informático, prometi a mim mesmo que teria uma casa onde tudo seria automático. E consegui: luzes controladas pelo telemóvel, cortinas que se abriam ao nascer do sol, máquina de café programada para me acordar com o cheiro certo.
A Ana achava graça no início. “Parece que vivemos num filme de ficção científica!”, dizia ela, rindo-se enquanto o robô passava entre os nossos pés. Mas com o tempo, fui-me perdendo nos detalhes técnicos e esquecendo-me dos detalhes dela: o café feito à mão com espuma extra, os bilhetes deixados no frigorífico, as conversas longas ao serão.
— Miguel, tu já não me ouves — disse ela um dia, pousando a chávena na mesa com força suficiente para me fazer olhar para cima do portátil.
— Estou só a acabar este código, amor. Já falo contigo — respondi, sem desviar os olhos do ecrã.
Ela suspirou. E eu continuei a programar.
O tempo foi passando e as discussões tornaram-se mais frequentes. A Ana queria sair, ir ao parque, ver os amigos. Eu preferia ficar em casa, a testar o novo sistema de rega automática ou a comparar aplicações para gerir as compras do mês.
— Não sentes falta de nada? — perguntou-me ela numa noite chuvosa de novembro.
— Falta de quê? Temos tudo aqui. Não precisamos de sair para nada — respondi, convencido de que estava a oferecer-lhe o melhor dos mundos.
Ela olhou para mim como se eu fosse um estranho. E talvez já fosse.
A gota de água foi no Natal passado. A família dela veio jantar connosco. Preparei tudo: luzes ajustadas para criar ambiente, música ambiente escolhida pelo algoritmo das preferências da Ana, forno programado para assar o peru na hora certa. Mas quando a mãe dela me pediu para lhe mostrar como se fazia o arroz “à moda antiga”, percebi que já não sabia cozinhar sem instruções digitais.
— Miguel, tu já não sabes viver sem máquinas? — perguntou-me o sogro, com um sorriso triste.
Ri-me para disfarçar o embaraço. Mas aquela pergunta ficou-me atravessada.
Depois do jantar, enquanto todos conversavam animadamente na sala, dei por mim sozinho na cozinha, a arrumar pratos com a ajuda da máquina de lavar loiça. O barulho da água parecia abafar as vozes alegres da família. Senti-me deslocado na minha própria casa.
A Ana tentou falar comigo nessa noite.
— Miguel, eu amo-te. Mas sinto que já não há espaço para mim aqui. Só há espaço para as tuas máquinas.
— Isso não é verdade! Faço isto por nós! Para termos mais tempo juntos!
— Mas nunca estamos juntos… — murmurou ela.
No dia seguinte, ela começou a fazer as malas.
Durante semanas tentei convencê-la a ficar. Prometi desligar tudo, prometi mudar. Mas ela já estava cansada de promessas automáticas.
A casa ficou vazia. O silêncio era cortante. Os aparelhos continuavam a funcionar como sempre — eficientes, previsíveis, frios.
Comecei a reparar em pequenas coisas: o eco dos meus passos no corredor sem risos; o cheiro do café feito pela máquina era sempre igual, mas faltava-lhe qualquer coisa; os bilhetes no frigorífico tinham desaparecido e ninguém me perguntava como tinha sido o meu dia.
Os meus pais ligaram-me preocupados.
— Miguelinho, tens de sair dessa casa! Anda jantar connosco — insistia a minha mãe.
— Estou bem aqui — mentia eu.
Mas não estava bem. A solidão era um peso constante no peito. Comecei a evitar os amigos porque não sabia explicar porque é que a Ana tinha ido embora. Dizia-lhes que era só uma fase, que ela precisava de espaço.
Uma noite acordei sobressaltado com um barulho estranho. O aspirador tinha ficado preso debaixo do sofá e apitava desesperadamente. Levantei-me e desliguei-o à força. Sentei-me no chão da sala escura e chorei pela primeira vez em anos.
Foi aí que percebi: nenhuma máquina podia preencher aquele vazio. Nenhuma aplicação podia substituir um abraço ou uma conversa sincera ao fim do dia.
Tentei mudar. Comecei por desligar os aparelhos aos poucos. Cozinhei arroz “à moda antiga”, mesmo queimando-o nas primeiras tentativas. Liguei à Ana várias vezes, mas ela não atendeu.
Procurei ajuda num grupo de apoio local para pessoas em situações de separação. Conheci outras histórias parecidas: gente que se esconde atrás do trabalho ou da tecnologia para não enfrentar os próprios sentimentos.
Um dia cruzei-me com a Ana no mercado municipal. Ela estava diferente — mais leve, mais sorridente.
— Olá, Miguel — disse ela, com um brilho nos olhos que já não via há muito tempo.
— Olá… — respondi, sentindo um nó na garganta.
Ficámos ali parados uns segundos embaraçados até ela perguntar:
— Como tens estado?
— A aprender… — confessei. — A aprender que há coisas que nenhuma máquina pode dar.
Ela sorriu tristemente e despediu-se com um aceno leve.
Voltei para casa e sentei-me à mesa da cozinha vazia. Olhei à minha volta: tudo brilhava e funcionava na perfeição, mas faltava vida ali dentro.
Hoje continuo sozinho nesta casa cheia de tecnologia. Aprendi a valorizar os pequenos gestos humanos: um telefonema inesperado dos pais, um convite para jantar dos amigos, um sorriso trocado na rua.
Às vezes pergunto-me: quantos de nós trocamos afetos por eficiência sem perceber? Será que vale mesmo a pena automatizar tudo se isso nos custa aquilo que nos faz humanos?