Entre Duas Famílias: A Escolha de Ana e a Dor de uma Madrasta

— Não me peças para escolher, Marta! — gritou a Ana, com os olhos marejados de lágrimas, enquanto apertava a mochila contra o peito. O eco da sua voz ainda ressoava nas paredes frias da sala, e eu, parada à porta, sentia o peso de cada palavra como se fossem pedras a cair-me em cima.

Naquele momento, percebi que tudo aquilo que eu mais temia estava a acontecer. O meu marido, João, estava na cozinha, fingindo que lavava a loiça, mas eu sabia que ele ouvia cada sílaba. Os meus filhos pequenos brincavam no quarto ao lado, alheios à tempestade que se abatia sobre nós. E eu ali, entre a culpa e o desespero, sem saber como proteger aquela menina que não era minha filha de sangue, mas era minha filha de coração.

Ana tinha 15 anos e era filha do João com a Teresa, a primeira mulher dele. Quando casei com o João, há sete anos, prometi a mim mesma que nunca seria aquela madrasta fria dos contos de fadas. Queria ser amiga da Ana, queria que ela sentisse que tinha uma casa aqui. Mas depois vieram os gémeos, o trabalho, as contas para pagar… E as pequenas feridas começaram a abrir-se.

— Não é justo! — continuou ela. — A mãe diz que aqui não sou bem-vinda. O pai diz que tenho de aprender a partilhar. E tu… tu finges que está tudo bem!

Senti um nó na garganta. Era verdade. Eu fingia muitas vezes. Fingir era mais fácil do que enfrentar o olhar magoado da Ana ou as discussões baixinho com o João à noite.

— Ana, por favor… — tentei aproximar-me dela, mas ela recuou.

— Não! Não venhas com esse tom calmo! — gritou ela. — Eu não sou invisível! Eu existo!

Lembrei-me da primeira vez que ela me chamou “mãe” sem querer. Tinha sido num supermercado, quando era pequena. Olhou para mim e disse: “Mãe, posso levar isto?” Depois ficou vermelha e corrigiu-se logo: “Desculpa… Marta.” Na altura sorri, mas por dentro senti um calor estranho no peito. Agora, anos depois, parecia impossível voltar àquele momento.

A Teresa nunca facilitou as coisas. Sempre desconfiou de mim. Achava que eu queria roubar-lhe a filha. E eu tentava não responder às provocações dela nos portões da escola ou nas reuniões de pais. Mas Ana sentia tudo. Sentia a tensão nos olhares, nos silêncios.

Naquela noite, depois da discussão, fui ao quarto dela. Estava escuro e só se ouvia o som abafado do choro dela.

— Ana… — sussurrei.

Ela não respondeu. Sentei-me na ponta da cama.

— Eu sei que não sou tua mãe… — comecei. — Mas gosto muito de ti. E dói-me ver-te assim.

Ela virou-se para a parede.

— Porque é que tem de ser sempre eu a escolher? — murmurou.

Fiquei ali sentada muito tempo. Lembrei-me da minha própria infância em Coimbra, dos meus pais divorciados e das vezes em que também me senti dividida entre dois mundos. Mas nunca tive coragem de contar isso à Ana. Talvez achasse que não era relevante. Agora percebia como era importante partilhar as nossas dores.

No dia seguinte, o João tentou falar com ela antes de ir para o trabalho.

— Filha… — disse ele, hesitante — sabes que te amamos muito aqui em casa.

Ana encolheu os ombros.

— Então porque é que parece sempre que estou a mais?

O João ficou sem resposta. Eu vi nos olhos dele o mesmo medo que sentia em mim: o medo de perder a filha para sempre.

Durante semanas, a casa ficou mais fria. Os gémeos perguntavam pela irmã mais velha e eu inventava desculpas: “A Ana está cansada”, “A Ana tem testes”. Mas eles sentiam falta dela nas brincadeiras e nos jantares barulhentos.

Um sábado à tarde, a Teresa apareceu à porta sem avisar. Trazia um ar decidido e olhou-me de cima abaixo como se eu fosse uma intrusa na minha própria casa.

— Vim buscar a Ana — disse ela secamente.

O João saiu da sala com passos pesados.

— Teresa, podemos falar lá fora?

Ficaram os dois no jardim a discutir baixinho enquanto eu tentava acalmar os gémeos e a Ana arrumava as coisas no quarto dela. Quando voltou à sala, trazia apenas uma mochila pequena.

— Vais mesmo? — perguntei-lhe, sentindo o coração apertado.

Ela olhou para mim com uma tristeza antiga nos olhos.

— Não sei… Só sei que aqui não aguento mais.

Quis abraçá-la mas ela desviou-se.

— Adeus, Marta.

E saiu sem olhar para trás.

Os dias seguintes foram um vazio difícil de explicar. O João fechou-se ainda mais nele próprio; os gémeos perguntavam cada vez menos pela irmã; e eu sentia-me uma impostora naquela casa cheia de silêncios.

Uma noite, depois de todos estarem a dormir, sentei-me na cozinha com um copo de vinho barato e chorei em silêncio. Senti raiva da Teresa por nunca ter tentado facilitar as coisas; raiva do João por não saber proteger a filha; raiva de mim própria por não ter sido melhor madrasta; raiva do mundo por ser tão injusto para quem só quer amar.

Passaram-se meses até recebermos notícias da Ana. Um dia chegou uma carta pelo correio — escrita à mão, cheia de rasuras e lágrimas secas:

“Marta,
Não sei se algum dia vou conseguir perdoar tudo isto. Sinto falta dos gémeos e até das tuas sopas horríveis ao jantar. Mas preciso de tempo para perceber quem sou no meio disto tudo. Não deixes o pai desistir de mim. E tu também não desistas.
Ana”

Li aquela carta dezenas de vezes. Mostrei-a ao João e juntos chorámos como crianças perdidas num mundo demasiado grande para nós.

Hoje escrevo-vos esta história porque acredito que há muitas Martas e Anas por aí — presas entre famílias partidas e corações remendados à pressa. Ainda sonho com o dia em que a Ana volte para casa e possamos rir juntas das minhas sopas horríveis.

Mas pergunto-me: quantas vezes é preciso perder alguém para percebermos quanto amamos? E será possível reconstruir uma família quando os cacos já cortaram tão fundo?