Em vez de “Olá”, ouvi “Sou a mulher do Miguel”. Foi devastador.
— Não me digas que voltaste a falar com o Miguel, Inês! — sussurrei, tentando controlar a voz, mas sentindo o coração a bater tão forte que quase me sufocava.
A chuva batia com força nos vidros do café, abafando parte da nossa conversa. Inês olhou-me nos olhos, hesitante, e abanou a cabeça. — Não, Mariana. Não voltei a falar com ele. Mas… — fez uma pausa, mordendo o lábio inferior — há coisas que tu não sabes.
Antes que pudesse responder, um jovem de sorriso fácil e olhar intenso aproximou-se da nossa mesa. Era bonito, tinha aquele ar descontraído típico dos lisboetas que sabem o que querem. — Desculpem interromper — disse ele, olhando primeiro para mim e depois para Inês —, mas não pude deixar de ouvir o vosso sotaque. Sou o Miguel.
O nome ecoou na minha cabeça como um trovão. O Miguel? O mesmo nome do meu ex-namorado, aquele que partiu o meu coração há dois anos? Senti o sangue gelar-me nas veias. Inês ficou tensa, mas sorriu educadamente.
— Olá, Miguel. Eu sou a Inês e esta é a minha irmã, Mariana.
Ele sentou-se sem pedir licença, como se já nos conhecesse há anos. Começou a falar sobre trivialidades — o tempo, o trânsito na Segunda Circular, as saudades do verão. Mas eu mal conseguia ouvir. Só conseguia pensar no nome dele e no passado que tanto tentei enterrar.
A conversa desenrolou-se naturalmente e, para meu espanto, dei por mim a rir das piadas dele. Miguel era encantador, atencioso e parecia genuinamente interessado em conhecer-nos. Quando se despediu, deixou um cartão com o número dele e um convite para um concerto de fado na sexta-feira seguinte.
— Achas que devo ir? — perguntei à Inês assim que ele saiu.
Ela hesitou antes de responder. — Mariana… tens de seguir em frente. Talvez seja uma boa oportunidade.
Durante os dias seguintes, não consegui parar de pensar no Miguel. O nome dele era uma ferida aberta, mas havia algo naquele desconhecido que me puxava para fora da minha concha. Sexta-feira chegou e, contra todas as minhas inseguranças, fui ao concerto.
O ambiente era mágico: luzes baixas, cheiro a vinho tinto e vozes profundas a cantar desgostos antigos. Miguel estava à minha espera à porta. Conversámos durante horas sobre tudo e nada. Senti-me viva como há muito não me sentia.
Começámos a sair regularmente. Inês parecia feliz por mim, mas havia algo no olhar dela que me inquietava — uma sombra de preocupação ou talvez inveja? Não sabia ao certo.
Certo dia, ao chegar ao café onde costumávamos encontrar-nos, vi Miguel sentado com uma mulher elegante de cabelo escuro e olhos tristes. Hesitei antes de me aproximar. Quando me viram, a mulher levantou-se e disse:
— Olá. Sou a mulher do Miguel.
O chão fugiu-me dos pés. Senti-me ridícula, traída e furiosa ao mesmo tempo. Miguel tentou explicar-se:
— Mariana, deixa-me explicar…
Mas eu já não ouvia nada. Saí dali a correr, as lágrimas misturavam-se com a chuva fria de Lisboa.
Passei dias fechada em casa, ignorando chamadas e mensagens. Inês apareceu à minha porta com um saco de pastéis de nata e um olhar preocupado.
— Mariana, tens de comer alguma coisa…
— Como é que ele pôde? Como é que tu não viste nada? — gritei-lhe, incapaz de conter a raiva.
Ela sentou-se ao meu lado no sofá e abraçou-me. — Eu sabia… — murmurou baixinho.
Afastei-me dela como se tivesse levado um murro no estômago. — Sabias?!
— Ele contou-me logo no início… mas pediu-me segredo. Disse que estava infeliz no casamento e que queria contar-te tudo quando estivesse pronto.
A traição da minha irmã doeu quase tanto como a do Miguel. Senti-me sozinha no mundo.
Os dias passaram arrastados. No trabalho, mal conseguia concentrar-me; em casa, tudo me lembrava dele. A minha mãe ligava todos os dias:
— Mariana, filha… tens de reagir! Não podes deixar que um homem te destrua assim!
Mas eu não queria ouvir ninguém.
Até que uma noite recebi uma mensagem inesperada da mulher do Miguel: “Preciso de falar contigo.” Hesitei antes de responder, mas acabei por aceitar encontrar-me com ela num jardim perto do Príncipe Real.
Ela chegou pontual, envolta num casaco comprido e com um ar cansado.
— Mariana… desculpa ter aparecido daquela maneira no café. Eu já sabia da vossa relação há algum tempo.
Fiquei sem palavras.
— O Miguel já me traiu antes — continuou ela — mas desta vez foi diferente. Vi nos olhos dele que estava apaixonado por ti.
Senti uma mistura de vergonha e raiva.
— Eu não sabia que ele era casado…
Ela sorriu tristemente. — Eu sei. Não te culpo. Só queria pedir-te uma coisa: não deixes que isto te destrua como me destruiu a mim.
Voltando para casa naquela noite, senti um peso enorme levantar-se dos meus ombros. Pela primeira vez em semanas consegui dormir sem pesadelos.
No dia seguinte liguei à Inês:
— Preciso de falar contigo.
Encontrámo-nos junto ao Tejo, onde costumávamos ir quando éramos crianças. O vento frio cortava-nos a pele mas não nos afastou.
— Desculpa ter-te mentido — disse ela antes de eu dizer qualquer coisa.
— Doeu muito — respondi — mas percebo porque o fizeste.
Abraçámo-nos em silêncio durante longos minutos.
Com o tempo fui reconstruindo os pedaços da minha vida. Voltei a sair com amigas, inscrevi-me num curso de cerâmica e até comecei a correr ao fim da tarde pelo Parque Eduardo VII. Miguel tentou contactar-me várias vezes mas nunca respondi.
Hoje olho para trás e vejo como tudo mudou naquele café numa tarde chuvosa em Lisboa. Perdi uma ilusão mas ganhei uma força nova dentro de mim.
Às vezes pergunto-me: quantas vezes deixamos que os outros definam o nosso valor? E será possível perdoar verdadeiramente quem nos traiu?