“Ele é o meu pai, e vai estar no meu casamento, gostes ou não”: A filha que desafiou a mãe e a família
— Não, Inês! Já te disse mil vezes: ele não vai pôr os pés no teu casamento! — A voz da minha mãe ecoou pela cozinha, tremendo de raiva e mágoa. Eu estava de pé, as mãos fechadas em punhos, sentindo o coração a bater tão forte que quase me sufocava.
— Ele é o meu pai, mãe. E vai estar lá, quer tu gostes ou não! — respondi, tentando não chorar. O cheiro do café queimado misturava-se com o peso das palavras não ditas. A minha mãe virou-me as costas, limpando as lágrimas com o avental.
O silêncio caiu entre nós como uma sentença. Lembrei-me do dia em que tudo começou a ruir. Tinha seis anos quando percebi que a minha família não era como as outras. Os meus pais mal se olhavam. A minha mãe, Leonor, era uma mulher forte, mas marcada por uma tristeza antiga. O meu pai, António, era um homem calado, com um sorriso tímido que só mostrava quando achava que ninguém via.
Dizem que o casamento deles era perfeito até eu nascer. Ouvi isso da minha avó materna, num daqueles almoços de domingo em que as conversas sussurradas pareciam facas afiadas. “A tua mãe nunca perdoou o teu pai por te ter deixado sozinha com ela”, disse-me ela uma vez, enquanto me servia mais sopa.
Cresci entre duas casas: uma cheia de regras e silêncios, outra cheia de promessas quebradas e desculpas atrasadas. A minha mãe trabalhava horas intermináveis como enfermeira no Hospital de Santa Maria. O meu pai era taxista em Lisboa. Vivia num pequeno apartamento em Benfica, onde me recebia com um sorriso cansado e um prato de arroz de pato aquecido no micro-ondas.
Lembro-me de uma noite em particular. Tinha doze anos e estava doente. Liguei ao meu pai porque a minha mãe estava de turno e eu sentia-me sozinha. Ele apareceu em casa com um saco de laranjas e um livro do José Rodrigues dos Santos. Sentou-se ao meu lado na cama e leu-me até adormecer. Foi a primeira vez que senti que ele era realmente meu pai.
Mas a minha mãe nunca esqueceu nem perdoou. Sempre que eu falava dele, ela mudava de assunto ou ficava fria como gelo. “Ele escolheu sair, Inês. Não te iludas”, dizia-me sempre.
Quando conheci o Miguel, tudo mudou. Ele era diferente dos outros rapazes: atento, carinhoso e paciente com os meus medos e inseguranças. Pediu-me em casamento numa noite chuvosa na praia da Costa da Caparica. Disse-lhe logo: “O meu pai tem de estar lá.” Ele sorriu e disse: “Claro que sim.” Mas eu sabia que não seria assim tão simples.
A preparação do casamento foi um campo minado. A minha mãe envolveu-se em tudo: o vestido, as flores, a lista de convidados. Mas quando lhe disse que queria o meu pai a levar-me ao altar, ela explodiu.
— Não! Ele não merece! — gritou ela, atirando a lista para o chão.
— Mãe, ele é o meu pai! Eu preciso dele lá! — implorei.
— E eu? Eu estive sempre aqui! Fui eu que te criei! — chorou ela.
— Eu sei… mas ele também faz parte de mim — sussurrei.
Durante semanas não nos falámos. O Miguel tentava apaziguar as coisas, mas eu sentia-me dividida ao meio. O meu pai ligava-me todos os dias, perguntando se podia ajudar com alguma coisa. Sentia-lhe a voz trémula do outro lado da linha.
Um dia, decidi ir falar com ele cara a cara.
— Pai… — comecei, sentada no sofá gasto do seu apartamento.
— Sei porque vieste — interrompeu ele. — Não quero estragar nada, Inês. Se for melhor para ti… eu não vou.
— Não digas isso! Eu quero-te lá! — disse-lhe, agarrando-lhe as mãos ásperas.
Ele olhou-me nos olhos e vi ali toda a culpa do mundo.
— A tua mãe tem razão em estar magoada. Eu falhei-vos às duas… Mas nunca deixei de te amar.
Chorei como uma criança nos braços dele. Pela primeira vez desde que me lembrava, senti que talvez fosse possível perdoar.
Os dias passaram e a tensão em casa aumentava. A minha mãe evitava-me; o meu pai mandava mensagens curtas; eu sentia-me sozinha no meio do caos.
Na véspera do casamento, sentei-me na varanda com a minha mãe. O céu estava carregado de nuvens e Lisboa parecia suspensa no tempo.
— Mãe… — comecei.
Ela não respondeu.
— Preciso mesmo que tentes compreender… Eu amo-te tanto quanto amo o pai. Não quero escolher entre vocês.
Ela olhou-me finalmente, os olhos vermelhos de tanto chorar.
— Sabes o que dói mais? Não foi ele ter ido embora… Foi sentir que nunca fui suficiente para ti — confessou ela.
Fiquei sem palavras. Abracei-a com força.
— Tu és tudo para mim… Mas preciso dos dois neste dia — sussurrei-lhe ao ouvido.
Na manhã do casamento, acordei com o coração apertado. O vestido branco pendurado na porta parecia pesar toneladas. O Miguel esperava-me na igreja de São Domingos; os convidados já enchiam os bancos; mas eu só pensava se a minha mãe e o meu pai conseguiriam estar juntos sem se destruírem mutuamente.
Quando cheguei à igreja, vi-os: a minha mãe sentada na primeira fila, o meu pai parado à porta, nervoso como nunca o tinha visto. Caminhei até ele.
— Estás pronta? — perguntou-me ele, tentando sorrir.
— Só se fores tu a levar-me — respondi-lhe.
Entrámos juntos na igreja. Senti todos os olhares sobre nós: alguns de surpresa, outros de reprovação. Mas naquele momento só existíamos nós dois.
No altar, olhei para a minha mãe. Ela chorava baixinho, mas sorriu-me pela primeira vez em meses.
A cerimónia passou num instante. No final, abracei os dois ao mesmo tempo — pela primeira vez desde que me lembrava, éramos uma família outra vez, mesmo que só por uns minutos.
Hoje escrevo esta história com lágrimas nos olhos e um nó na garganta. Sei que nada será perfeito; sei que as feridas demoram a sarar. Mas pergunto-me: quantas famílias vivem presas ao passado? Quantos pais e mães deixam o orgulho falar mais alto do que o amor pelos filhos?
Será possível perdoar sem esquecer? E será justo pedir aos outros para esquecerem aquilo que nos magoou tanto?