“Duvido que saibas sequer cozinhar um prato decente. O meu filho merece o melhor”, disse a minha futura sogra
“Duvido que saibas sequer cozinhar um prato decente. O meu filho merece o melhor.” As palavras da Dona Lurdes cortaram-me como uma faca afiada, mesmo antes de eu conseguir pousar o tabuleiro de bolinhos de bacalhau que tinha preparado com tanto cuidado. O Miguel, ao meu lado, ficou tenso, mas não disse nada. Eu sabia que ele me tinha avisado: “A minha mãe é difícil, Matilde. Não leves a peito.” Mas como não levar?
O cheiro do bacalhau ainda pairava no ar da cozinha, misturado com o aroma forte do café acabado de fazer. A mesa estava posta com a toalha de linho que a Dona Lurdes só usava em ocasiões especiais. Eu sentia-me uma intrusa, uma impostora naquele cenário tão português, tão dela.
“Se calhar preferia que eu tivesse trazido pastéis de nata da pastelaria”, tentei brincar, mas a Dona Lurdes nem sorriu. “O Miguel sempre gostou dos meus bolinhos. Não é, filho?” Ele assentiu, mas olhou para mim, pedindo desculpa com os olhos.
A conversa durante o almoço foi um campo minado. Cada pergunta era uma armadilha: “E os teus pais, Matilde? Fazem o quê?”; “Já pensaste em casar na igreja ou és dessas modernas?”; “Não tens irmãos? Que pena, o Miguel sempre quis uma família grande.”
Eu respondia como podia, tentando manter a dignidade. Mas sentia-me cada vez mais pequena, esmagada pelo peso das expectativas daquela mulher que via em mim uma ameaça ao seu império doméstico. O Miguel tentava intervir, mas era sempre interrompido por um olhar ou um gesto da mãe.
Quando finalmente nos levantámos da mesa, ela olhou para mim e disse: “A cozinha está uma confusão. Espero que saibas limpar tão bem como cozinhas.” Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas engoli em seco e fui buscar o pano da loiça.
No carro, a caminho de casa, o Miguel tentou animar-me: “Ela vai habituar-se. Só precisa de tempo.” Mas eu sabia que não era só isso. Havia ali uma batalha antiga, uma luta pelo controlo do filho único, que agora me via como rival.
Durante semanas, evitei ir lá a casa. O Miguel ia sozinho aos domingos, e eu ficava em casa a pensar se algum dia seria aceite naquela família. A minha mãe dizia-me para ter paciência: “As sogras são todas iguais, filha. Vais ver que um dia ela amolece.” Mas eu não queria ser apenas tolerada; queria ser respeitada.
O ponto de rutura chegou numa tarde chuvosa de novembro. O Miguel apareceu em casa com os olhos vermelhos. “A minha mãe disse que se casarmos, não vai ao casamento.” Senti o chão fugir-me dos pés. “E tu? O que vais fazer?” perguntei-lhe, a voz trémula.
Ele ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que ia desistir de nós. Mas depois abraçou-me com força: “Eu amo-te, Matilde. Mas não consigo escolher entre ti e a minha mãe.”
Durante dias quase não falámos. Eu ia trabalhar como um autómato, respondia mecanicamente às mensagens das amigas e evitava olhar para as fotos do Miguel no telemóvel. Sentia-me sozinha e injustiçada. Afinal, o que tinha eu feito de tão errado? Porque é que nunca era suficiente?
Uma noite, depois de horas a chorar no sofá, tomei uma decisão: ia falar com a Dona Lurdes cara a cara. Não podia continuar a viver naquela sombra.
No sábado seguinte bati à porta dela sem avisar. Ela abriu com ar surpreendido e desconfiado.
“Preciso de falar consigo”, disse-lhe sem rodeios.
Sentámo-nos na sala, rodeadas por fotografias do Miguel em todas as idades: no batizado, na escola primária, no futebol… Era impossível competir com aquela história toda.
“Dona Lurdes”, comecei, “eu amo o seu filho. E sei que ele também me ama. Não quero tirar-lhe nada; só quero fazer parte da vossa família.”
Ela ficou calada durante uns segundos eternos. Depois levantou-se e foi buscar uma chávena de chá para si mesma – não me ofereceu nada.
“Eu só quero o melhor para o Miguel”, disse finalmente. “Sempre fui eu a cuidar dele. Sei o que ele gosta, sei quando está triste ou cansado… E agora aparece alguém e acha que pode fazer melhor?”
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. “Eu não quero fazer melhor do que ninguém”, respondi, tentando controlar a voz. “Quero apenas ser feliz com ele. E gostava que me desse uma oportunidade.”
Ela olhou-me nos olhos pela primeira vez desde que entrei na casa dela. “E se eu não conseguir?”
“Então vai perder o filho”, disse-lhe sem hesitar.
O silêncio instalou-se entre nós como um muro intransponível. Levantei-me e fui embora sem esperar resposta.
Nessa noite contei tudo ao Miguel. Ele ficou em choque com a minha coragem – ou talvez com a minha ousadia – mas prometeu que ia falar com a mãe.
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções: medo de perder o Miguel, raiva pela injustiça da situação, tristeza por ver uma família desmoronar-se por orgulho e insegurança.
Finalmente, numa tarde fria de dezembro, recebi uma mensagem do Miguel: “A minha mãe quer falar contigo.”
Voltei àquela casa com o coração aos pulos. A Dona Lurdes estava diferente – mais cansada talvez, ou apenas resignada.
“Matilde”, disse ela num tom menos agressivo do que antes, “não prometo gostar de ti como gostava da mãe do Miguel… mas vou tentar.”
Foi pouco – mas foi um começo.
Hoje olho para trás e vejo como tudo podia ter acabado mal se eu tivesse desistido à primeira dificuldade. Ainda há dias em que sinto os olhares críticos da Dona Lurdes ou ouço comentários passivo-agressivos sobre os meus cozinhados (“Falta-lhe sal”, “A minha receita é diferente…”), mas já não me deixam acordada à noite.
O Miguel e eu casámos pelo civil num jardim pequeno, rodeados dos nossos amigos mais próximos e da família – incluindo a Dona Lurdes, sentada na primeira fila com um sorriso tímido e orgulhoso.
Às vezes pergunto-me: quantas pessoas desistem do amor por medo dos outros? Quantas famílias se perdem por orgulho? Será que vale sempre a pena lutar até ao fim?