Durante 18 Anos, Servi o Mesmo Cliente Rabugento. A Sua Ausência Revelou Uma Verdade Amarga

— Outra vez o galão frio, Nicole? Não sabes fazer nada direito? — O Sr. António resmungou, batendo com a colher na chávena, como fazia todas as manhãs há dezoito anos.

Eu respirei fundo, tentando não mostrar que as palavras me magoavam. O café estava cheio, o cheiro a torradas misturava-se com o perfume barato da D. Rosa, e o rádio antigo tocava Amália baixinho. Mas para mim, naquele momento, só existia o Sr. António e a sua rabugice.

— Desculpe, Sr. António. Já lhe trago outro — respondi, forçando um sorriso enquanto pegava na chávena.

Ele vinha sempre sozinho, sentava-se no canto junto à janela e lia o jornal do dia anterior. Nunca sorria, nunca agradecia. Só reclamava: do café, do tempo, das notícias, do barulho das crianças. E eu, todos os dias, perguntava-me porque continuava a vir.

A minha mãe dizia que ele era assim desde que a mulher morrera. O meu pai limitava-se a encolher os ombros: “Enquanto pagar, deixa-o estar.” Mas eu sentia que havia mais ali. Algo que ninguém via.

Naquela manhã de novembro, o Sr. António não apareceu. Achei estranho, mas não dei muita importância. Talvez estivesse doente, pensei. No dia seguinte, também não veio. Nem no outro. O canto da janela parecia mais frio sem ele.

— Nicole, sabes alguma coisa do Sr. António? — perguntou-me a D. Rosa ao terceiro dia de ausência.

— Não… Nunca falou da família ou de amigos. Só vinha cá — respondi.

O silêncio instalou-se no café. Até o rádio parecia mais baixo.

Na semana seguinte, uma carta chegou ao café com o meu nome escrito numa caligrafia trémula. O remetente era “António Silva”. As minhas mãos tremiam quando abri o envelope.

“Nicole,

Se estás a ler isto é porque já não volto ao café. Não te assustes, não foi culpa tua nem do galão frio. Só queria agradecer-te por me aturares todos estes anos. Sei que não fui fácil. Mas tu foste a única constante na minha vida depois que perdi tudo.

Há algo que preciso que saibas: o teu pai e eu fomos amigos de infância. Crescemos juntos nesta cidade, partilhámos segredos e sonhos. Mas uma discussão estúpida separou-nos durante décadas. Quando voltei a Coimbra depois da morte da minha mulher, só queria ver se ele estava bem… mas nunca tive coragem de lhe falar.

Vim ao café todos os dias só para o ver de longe e sentir que ainda fazia parte de alguma coisa. Tu foste como uma filha para mim, mesmo sem saberes.

Perdoa-me por nunca ter tido coragem de dizer isto em voz alta.

Com carinho,
António”

As lágrimas caíram-me pelo rosto sem eu conseguir controlar. O meu pai estava atrás do balcão e percebeu logo que algo se passava.

— O que foi, filha? — perguntou ele, preocupado.

Entreguei-lhe a carta em silêncio. Vi-o ler cada linha devagar, os olhos marejados de lágrimas que raramente lhe vi.

— Eu… Eu nunca soube — murmurou ele, sentando-se pesadamente numa cadeira.

O silêncio entre nós era pesado como chumbo. Pela primeira vez, vi o meu pai vulnerável, despido daquela armadura de homem forte que sempre conheci.

— Porque é que nunca falaram? — perguntei-lhe baixinho.

Ele olhou para mim com tristeza.

— Orgulho, Nicole… Orgulho e teimosia. E agora é tarde demais.

Nos dias seguintes, o café parecia diferente. Os clientes habituais perguntavam pelo Sr. António e eu limitava-me a dizer que estava doente. Não tive coragem de contar a verdade a ninguém.

À noite, sonhava com ele sentado no seu canto, resmungando sobre o galão frio e olhando para o meu pai quando achava que ninguém reparava.

Comecei a reparar em outras solidões à minha volta: a D. Rosa que falava sempre do filho emigrado em França; o Sr. Manuel que vinha jogar às cartas sozinho; até eu própria, presa entre os sonhos adiados e as rotinas do café.

Um dia, decidi ir à casa do Sr. António. Era uma casa pequena nos arredores da cidade, com um jardim descuidado e cortinas sempre fechadas. Bati à porta sem saber bem o que dizer se alguém atendesse.

Ninguém respondeu. Mas uma vizinha aproximou-se:

— Procuras o Sr. António? Faleceu há uns dias… Estava sozinho há muito tempo — disse ela com um olhar triste.

Agradeci e voltei para casa com um peso no peito impossível de descrever.

No funeral estavam poucas pessoas: um primo afastado, dois vizinhos e eu. Levei-lhe flores brancas e deixei um bilhete junto à campa: “Obrigada por tudo.”

Naquela noite, sentei-me com o meu pai na cozinha do café já fechado. O cheiro a café velho pairava no ar e as luzes eram suaves.

— Pai… Achas que ainda há tempo para perdoar? Para dizer aquilo que nunca dissemos?

Ele olhou para mim com olhos cansados mas cheios de ternura.

— Enquanto estivermos vivos, Nicole… há sempre tempo.

Desde então, tento ser menos orgulhosa e mais aberta com quem amo. Aprendi que por trás de cada rabugice pode estar uma dor antiga ou um segredo guardado há demasiado tempo.

Às vezes pergunto-me: quantas pessoas passam por nós todos os dias carregando fardos invisíveis? E se tivéssemos coragem de perguntar “está tudo bem?” em vez de julgar?

E vocês? Já perderam alguém sem terem dito tudo o que sentiam? O que fariam diferente se tivessem uma segunda oportunidade?