De Volta a Casa: Entre o Amor e a Saudade — A Minha História com a Inês
— Mãe, vais mesmo embora? — A voz da Inês, rouca de choro, ecoa ainda na minha cabeça como se fosse ontem, embora já tenham passado quase dez anos. Estávamos sentadas à mesa da cozinha, o cheiro do café misturado com o das lágrimas dela. Eu não conseguia olhar-lhe nos olhos. Tinha as mãos trémulas, o passaporte já guardado na mala e uma carta por escrever.
— Filha, eu… — tentei começar, mas as palavras ficaram-me presas na garganta. Como é que se explica a uma criança de doze anos que a mãe precisa de partir para garantir que haja comida na mesa? Como é que se pede perdão antes sequer de cometer o erro?
O meu marido, o António, estava calado no canto da sala. Sempre foi homem de poucas palavras, mas naquele dia parecia ainda mais distante. Ele perdera o emprego há meses e eu era a única esperança de mantermos a casa. Mas ninguém fala do peso que é ser esperança quando tudo o que se quer é ser mãe.
Naquela noite, não dormi. Fiquei a ver a Inês a dormir, os cabelos espalhados na almofada, as mãos fechadas em punhos pequenos. Perguntei-me mil vezes se estava a fazer o certo. No aeroporto, ela agarrou-se às minhas pernas com uma força que nunca imaginei possível.
— Não vás, mãe! — gritou ela, enquanto o António tentava puxá-la. — Eu prometo que como sopa todos os dias! Não vás!
O som dos seus soluços ficou-me gravado na alma. Quando o avião levantou voo, chorei baixinho para não assustar os outros passageiros. Senti-me a pior mãe do mundo.
Em Paris, tudo era cinzento e frio. Trabalhava como empregada de limpeza num hotel perto da Gare du Nord. O ordenado era pouco, mas era mais do que conseguia em Lisboa. Mandava dinheiro todos os meses, mas sentia que cada euro enviado era um pedaço de mim arrancado à força.
As chamadas com a Inês eram cada vez mais curtas. Primeiro porque ela tinha vergonha de chorar ao telefone; depois porque começou a sair mais com as amigas e a responder-me só com monossílabos.
— Está tudo bem, mãe. — dizia ela.
Mas eu sabia que não estava. O António tentava ajudar, mas nunca foi bom com sentimentos. A casa tornou-se um lugar estranho para ambas.
No Natal do segundo ano, voltei a Lisboa. A Inês estava diferente: mais alta, cabelo pintado de azul nas pontas e um olhar que já não me procurava como antes.
— Trouxeste-me alguma coisa? — perguntou ela assim que me viu.
— Trouxe… — tentei sorrir, mostrando-lhe um cachecol cor-de-rosa.
Ela revirou os olhos e foi para o quarto sem dizer mais nada. Senti-me uma estranha na minha própria casa.
As discussões começaram pouco depois:
— Achas que podes aparecer quando te apetece e fingir que está tudo bem? — atirou ela um dia.
— Inês, eu faço isto por ti! — respondi, já sem forças para esconder as lágrimas.
— Eu nunca te pedi nada! Só queria que estivesses aqui!
O António tentava acalmar-nos, mas acabava sempre por sair para fumar no quintal. A nossa família estava a desmoronar-se e eu não sabia como colar os pedaços.
Voltei para França com o coração ainda mais pesado. Comecei a escrever cartas à Inês, mas nunca tive coragem de as enviar. Nelas contava-lhe dos meus dias solitários, das saudades do cheiro do mar português e do som da sua voz quando era pequena.
Os anos passaram assim: entre telefonemas frios, visitas rápidas e silêncios cada vez mais longos. A Inês fez-se mulher sem mim. Quando terminou o secundário, nem me convidou para a cerimónia.
Foi só quando recebi uma chamada do António — voz trémula e cansada — que percebi que tinha de voltar de vez:
— A Inês está mal… Anda metida com más companhias… Não sei o que fazer.
Larguei tudo em Paris: trabalho, quarto alugado e até os poucos amigos que fiz. Voltei para Lisboa sem saber se ainda tinha uma filha à minha espera ou apenas uma estranha.
A primeira noite foi um silêncio ensurdecedor. A Inês chegou tarde, cheirando a álcool e com os olhos vermelhos.
— O que fazes aqui? — perguntou ela, fria.
— Vim para ficar… — respondi baixinho.
Ela riu-se amargamente:
— Agora? Já não fazes falta.
Passei semanas a tentar reaproximar-me: cozinhava os pratos preferidos dela, deixava bilhetes no espelho da casa de banho, oferecia-lhe boleia para a escola. Mas ela mantinha-se distante, fechada numa bolha de mágoa.
Uma noite ouvi-a chorar no quarto. Entrei devagarinho e sentei-me ao lado dela na cama.
— Desculpa… — sussurrei. — Desculpa por ter ido embora quando mais precisavas de mim.
Ela não disse nada durante muito tempo. Depois encostou-se ao meu ombro e chorou como quando era criança.
— Eu só queria ter tido uma mãe como as outras…
Abracei-a com toda a força que tinha guardado durante anos. Ficámos assim muito tempo, sem palavras, só com lágrimas e promessas mudas de tentar outra vez.
A reconciliação não foi fácil nem rápida. Houve recaídas, discussões e portas batidas. Mas aos poucos fomos encontrando um novo caminho: fomos juntas à praia onde costumávamos ir quando ela era pequena; começámos a cozinhar juntas ao domingo; rimos das nossas desgraças e chorámos as saudades antigas.
Hoje olho para trás e vejo tudo o que perdi: aniversários, festas da escola, confidências de adolescente. Mas também vejo tudo o que ganhei: uma filha forte, resiliente e capaz de perdoar.
Às vezes pergunto-me se alguma vez serei capaz de perdoar-me totalmente pelo tempo perdido. Será possível reconstruir uma família depois de tantas ausências? Ou será que certas feridas ficam para sempre?
E vocês? Já tiveram de escolher entre partir para dar um futuro melhor ou ficar e arriscar perder tudo? Como se volta a ser mãe depois de tanto tempo longe?