As Visitas de Mariana: Segredos Entre Mãe e Nora

— Mariana, outra vez vais à casa da Dona Lurdes? — perguntou a minha mãe, com aquele tom entre o julgamento e a preocupação. Eu já estava com a mão na maçaneta da porta, sentindo o peso do olhar dela nas minhas costas. — Já não chega de te meteres na vida dessa família?

Respirei fundo, tentando conter a resposta atravessada que me subia à garganta. Não era fácil explicar o que me prendia àquela casa de paredes gastas, onde o cheiro a café forte e a roupa lavada se misturava com memórias que eu própria queria esquecer. Dez anos tinham passado desde que me divorciei do Rui, mas Dona Lurdes continuava a ser uma presença constante na minha vida. Mais do que isso: era uma necessidade.

O bairro inteiro falava. As vizinhas, sentadas nos bancos de pedra à porta dos prédios, cochichavam quando eu passava. “Lá vai ela outra vez…”, diziam. “Será que ainda gosta do ex-marido? Ou será que é por causa do dinheiro?”. Ninguém sabia. Nem mesmo o Rui, agora casado com a Andreia e pai de dois miúdos loiros que corriam pelo jardim da escola primária.

A verdade é que as minhas visitas começaram por obrigação. No início, depois do divórcio, sentia-me culpada. Dona Lurdes tinha perdido o filho para outra mulher e, de certa forma, também me tinha perdido a mim. Eu era a nora preferida — pelo menos era isso que ela dizia, entre risos e lágrimas, enquanto me servia fatias de bolo de laranja ainda quente. “Tu és como uma filha para mim, Mariana.” E eu acreditava.

Mas com o tempo, a obrigação transformou-se em algo mais profundo. Dona Lurdes adoeceu — primeiro uma gripe teimosa, depois um diagnóstico de Alzheimer precoce. O Rui visitava-a pouco; dizia que não aguentava vê-la assim, esquecida, perdida no tempo. A Andreia nunca gostou dela. E eu… eu não conseguia afastar-me.

— Mariana, não tens de fazer isto sozinha — disse-me o meu irmão Pedro uma noite, quando cheguei tarde a casa, cansada e com cheiro a desinfetante nas mãos. — O Rui é que devia cuidar da mãe dele.

— Ele não consegue — respondi, baixinho. — E ela só confia em mim.

A verdade é que Dona Lurdes já não se lembrava do nome do próprio filho. Chamava-me “filha” e perguntava todos os dias pelo meu pai, morto há mais de vinte anos. Às vezes confundia-me com a irmã dela, outras vezes achava que eu era uma enfermeira qualquer. Mas havia momentos de lucidez em que me olhava nos olhos e dizia: “Obrigada por não me deixares sozinha”.

Esses momentos eram tudo para mim.

Certo dia, ao chegar à casa dela, encontrei-a sentada no sofá, com um envelope antigo nas mãos. Tremia-lhe o queixo.

— Mariana… — murmurou ela — Sabes o que é isto?

Sentei-me ao lado dela e peguei-lhe nas mãos frias.

— Não sei, Dona Lurdes. Quer mostrar-me?

Ela abriu o envelope devagar e tirou de lá uma fotografia amarelada: eu e o Rui no nosso casamento, sorridentes e jovens, rodeados pela família toda. Olhei para aquela imagem como se fosse de outra vida.

— Foste feliz com ele? — perguntou-me ela, com uma clareza rara.

Engoli em seco. Não sabia o que responder. Tinha sido feliz? Ou apenas tinha tentado ser?

— Fui… durante algum tempo — admiti.

Ela pousou a mão sobre a minha.

— Eu também fui feliz por te ter como filha.

Nesse momento percebi: as minhas visitas não eram apenas por ela. Eram também por mim. Porque ali, naquela casa cheia de silêncios e recordações, eu encontrava uma parte de mim que tinha perdido no meio das discussões do divórcio, das traições do Rui, das noites em claro a chorar no sofá da minha mãe.

Mas nem tudo era ternura entre nós. Houve dias em que Dona Lurdes me acusou de ter destruído a família dela.

— Se não fosses tu tão fria… talvez o Rui não tivesse procurado outra! — gritou-me uma vez, num acesso de raiva.

Fiquei sem ar. Saí porta fora e só voltei dois dias depois. Mas quando voltei, ela já não se lembrava do que tinha dito. E eu perdoei-lhe — ou tentei perdoar.

O tempo foi passando e as minhas visitas tornaram-se rotina: todos os dias depois do trabalho, passava lá para lhe fazer companhia, dar-lhe banho ou simplesmente ouvir as histórias repetidas da infância dela em Trás-os-Montes. Às vezes levava-lhe flores do mercado; outras vezes apenas um sorriso cansado.

O Rui começou a desconfiar das minhas intenções.

— Porque é que continuas a ir lá? — perguntou-me um dia ao telefone, num tom frio e distante.

— Porque ela precisa de mim — respondi-lhe. — E porque tu não vais.

Ele ficou em silêncio durante uns segundos longos demais.

— A Andreia não gosta disso — disse ele por fim.

Sorri amargamente.

— A Andreia nunca gostou de mim. Nem da tua mãe.

Desliguei antes que ele pudesse responder.

No Natal desse ano, fui a única visita da Dona Lurdes. Levei-lhe um bolo-rei pequeno e embrulhei-lhe um cachecol azul-escuro que tricotei nas noites frias de dezembro. Sentámo-nos as duas à mesa da cozinha, rodeadas pelo silêncio pesado da ausência dos outros.

— Não te esqueças de mim — pediu-me ela antes de adormecer na poltrona.

Chorei baixinho enquanto lhe segurava a mão.

Quando Dona Lurdes morreu, fui eu quem tratou do funeral. O Rui apareceu à última hora, com ar culpado e olhar perdido. A Andreia ficou no carro com os miúdos. As vizinhas cochicharam ainda mais alto nesse dia: “Coitada da Mariana… foi mais filha do que o próprio filho”.

Depois do funeral, sentei-me sozinha na sala vazia da casa dela. Olhei para as fotografias nas paredes: casamentos, batizados, festas antigas onde todos sorriam sem saber o futuro que os esperava.

Senti um vazio enorme dentro de mim — como se tivesse perdido uma mãe pela segunda vez.

Agora passo muitas vezes pela rua dela e olho para as janelas fechadas. Pergunto-me se fiz bem em manter aquela ligação durante tanto tempo; se devia ter seguido em frente como toda a gente esperava; se o amor pode mesmo sobreviver ao fim das relações ou se apenas nos agarra ao passado por medo de ficarmos sozinhos.

Será que valeu a pena desafiar tudo e todos para cuidar de alguém que já nem sabia quem eu era? Ou será que fui egoísta ao procurar nela aquilo que perdi noutras partes da minha vida?

E vocês? O que fariam no meu lugar?