A Verdade Quebrada à Mesa: O Jantar Que Mudou Tudo

— Maria, podes passar-me o sal? — perguntou o António, sem sequer olhar para mim, os olhos fixos no telemóvel.

A mesa estava cheia, o cheiro do bacalhau com natas misturava-se com o aroma do vinho tinto. O riso dos outros parecia ecoar de longe, como se eu estivesse atrás de um vidro grosso. Era suposto ser uma noite de convívio, um jantar entre amigos na casa da Teresa e do João, mas eu sentia-me deslocada, como se tivesse entrado numa peça de teatro onde todos já conheciam o guião menos eu.

A Teresa falava alto sobre as férias em Albufeira, o João interrompia para contar piadas que faziam todos rir — menos eu. O António, meu marido há vinte e três anos, mal me dirigia a palavra. A nossa filha, a Inês, de dezassete anos, estava colada ao telemóvel, a rir-se baixinho das mensagens que trocava com alguém. Senti uma pontada no peito. Era assim sempre? Ou só agora é que me dei conta?

— Maria, estás bem? — perguntou a Teresa, com aquele sorriso de quem não quer realmente saber.

— Estou — respondi, forçando um sorriso. Mas por dentro gritava. Queria levantar-me e dizer: “Não, não estou bem! Sinto-me invisível nesta mesa, nesta família!”

O jantar continuou. O António falava animadamente com o João sobre futebol, ignorando completamente a minha tentativa de comentar o novo emprego da Inês. A Inês revirou os olhos quando lhe pedi para largar o telemóvel e ajudar a Teresa a pôr a sobremesa na mesa.

— Mãe, deixa estar. Eu já vou — disse ela, mas não se mexeu.

Senti-me pequena. Lembrei-me de quando a Inês era pequena e me abraçava sem motivo. Agora parecia que cada palavra minha era um incómodo.

A certa altura, ouvi a Teresa sussurrar para o João:

— A Maria anda tão apagada ultimamente…

Como se eu não estivesse ali. Como se fosse um móvel antigo que ninguém tem coragem de deitar fora.

O António riu-se alto de uma piada do João e bateu-lhe no ombro. Olhei para ele e vi um homem que já não reconhecia. Quando foi a última vez que tivemos uma conversa verdadeira? Quando foi a última vez que ele me olhou nos olhos?

A sobremesa chegou: arroz doce com canela em forma de coração. A Teresa serviu todos com carinho, menos a mim. O meu prato ficou para o fim, quase esquecido.

— Desculpa, Maria! — disse ela, apressada. — Nem reparei…

Sorri outra vez. O mesmo sorriso vazio que uso há anos.

Depois do jantar, enquanto todos conversavam animadamente na sala, fui à cozinha ajudar a arrumar. A Teresa entrou atrás de mim.

— Estás mesmo bem? Pareces tão distante…

Olhei para ela e quase chorei. Mas engoli as lágrimas.

— Só estou cansada — menti.

Ela assentiu, mas percebi que não acreditou.

Quando voltámos à sala, ouvi o António dizer:

— A Maria anda sempre cansada. Acho que é da idade.

Todos riram. Até a Inês.

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Saí para a varanda sem dizer nada. O ar fresco da noite cortou-me a pele como uma lâmina fina. Olhei para as luzes da cidade e perguntei-me: “Como cheguei aqui?”

Lembrei-me dos sonhos que tinha quando era jovem: queria ser professora de literatura, viajar pelo mundo, escrever um livro. Em vez disso, fiquei presa numa rotina de trabalho num escritório cinzento e noites solitárias ao lado de um homem que já não me via.

A porta da varanda abriu-se devagar. Era a Inês.

— Mãe… estás chateada?

Olhei para ela e vi nos olhos dela uma mistura de preocupação e impaciência.

— Não estou chateada — disse baixinho. — Só estou… cansada.

Ela encolheu os ombros e voltou para dentro.

Fiquei ali mais uns minutos, a tentar controlar as lágrimas. Quando voltei à sala, todos falavam sobre planos para as férias de verão. Ninguém perguntou se eu queria ir ou o que eu achava.

Na viagem de regresso a casa, o silêncio era pesado. O António ligou o rádio e começou a cantarolar desafinado. A Inês adormeceu no banco de trás.

Quando chegámos a casa, fui direta para o quarto. Sentei-me na cama e chorei baixinho para não acordar ninguém.

No dia seguinte, acordei cedo e preparei o pequeno-almoço como sempre. O António saiu apressado sem se despedir. A Inês reclamou do pão estar duro.

Sentei-me à mesa sozinha e olhei para as minhas mãos trémulas. Senti uma vontade súbita de fazer algo diferente, de mudar tudo.

Peguei no telemóvel e liguei à minha irmã, a Catarina.

— Catarina… preciso falar contigo.

Ela percebeu logo pela minha voz que algo não estava bem.

— Diz-me onde estás. Eu vou ter contigo — respondeu sem hesitar.

Encontrámo-nos num café perto do rio Douro. Quando a vi entrar, desatei a chorar.

— Maria… o que se passa?

Contei-lhe tudo: o jantar, o sentimento de invisibilidade, a solidão dentro da minha própria casa.

— Não podes continuar assim — disse ela firme. — Tens de te pôr em primeiro lugar por uma vez na vida!

As palavras dela ecoaram em mim durante dias. Comecei a reparar em pequenos detalhes: como o António nunca perguntava pelo meu dia; como a Inês só me procurava quando precisava de algo; como eu própria deixara de me cuidar, de me ouvir.

Numa noite qualquer, sentei-me com o António na sala depois do jantar.

— Precisamos falar — disse-lhe.

Ele olhou-me surpreendido.

— Sobre o quê?

— Sobre nós. Sobre mim. Sinto-me invisível nesta casa há anos e não aguento mais.

Ele ficou calado durante uns segundos longos demais.

— Estás a exagerar…

— Não estou! — gritei pela primeira vez em muito tempo. — Quero ser vista! Quero ser ouvida! Quero voltar a viver!

A discussão foi longa e dolorosa. Vieram à tona mágoas antigas, palavras duras foram ditas dos dois lados. No fim daquela noite, percebi que talvez não houvesse volta atrás.

Nos dias seguintes, procurei ajuda profissional. Comecei terapia. Inscrevi-me num curso de escrita criativa — aquele sonho antigo que sempre adiei por causa dos outros.

A relação com o António ficou por um fio. A Inês ficou revoltada no início, mas aos poucos começou a perceber que eu também era uma pessoa com sentimentos e sonhos próprios.

Hoje escrevo estas palavras sentada num café sozinha, mas sinto-me mais acompanhada do que nunca por mim mesma. Não sei como será o futuro — se vou continuar casada ou se vou recomeçar do zero — mas sei que já não aceito ser invisível.

Pergunto-me: quantas mulheres vivem assim caladas? Quantas vezes deixamos de ser protagonistas da nossa própria vida? E vocês… já se sentiram invisíveis dentro da vossa própria casa?