A Noite em Que os Meus Sonhos se Quebraram: Um Baile Para Nunca Esquecer

— Mariana, vais mesmo sair assim de casa? — A voz da minha mãe cortou o silêncio do corredor como uma faca afiada. Eu estava parada em frente ao espelho, a alisar o vestido azul-claro que tinha escolhido com tanto cuidado. O meu coração batia tão forte que parecia querer saltar do peito. O meu pai, sentado no sofá da sala, largou o jornal e olhou-me de cima a baixo, com aquele ar crítico que eu conhecia tão bem.

— Parece que vais para um carnaval, não para um baile da escola — disse ele, com um sorriso trocista. Senti o rosto a arder. O vestido era simples, mas para mim era especial. Tinha poupado a mesada durante meses para o comprar. Era o meu primeiro baile, e eu queria sentir-me bonita, diferente, talvez até um bocadinho adulta.

— Mãe, eu gosto deste vestido… — tentei argumentar, mas a minha voz saiu fraca, quase um sussurro. Ela suspirou, impaciente.

— Mariana, tens de aprender a ter mais juízo. Não podes ir assim. Toda a gente vai rir-se de ti. — O tom dela era duro, definitivo. Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas engoli-as com força. Não queria dar-lhes esse prazer.

O meu irmão mais velho, o Tiago, apareceu à porta do quarto com aquele sorriso de quem adora ver-me envergonhada.

— Olha a princesa do bairro! — gozou ele, rindo-se alto. — Vais dançar com o príncipe sapo?

A minha mãe lançou-lhe um olhar de reprovação, mas não disse nada. Eu queria desaparecer. Queria que o chão se abrisse e me engolisse. Mas, ao mesmo tempo, sentia uma raiva a crescer cá dentro. Porque é que ninguém conseguia ver o quanto aquele vestido significava para mim?

Acabei por ir ao baile. Não porque eles me deixaram, mas porque me recusei a mudar de roupa. Saí de casa de cabeça baixa, com os olhos ainda húmidos, sentindo o peso dos olhares e dos risos atrás de mim. O caminho até à escola pareceu interminável. Cada passo era uma luta contra a vontade de voltar para trás.

Quando cheguei ao ginásio da escola, as luzes coloridas e a música alta tentaram animar-me, mas eu sentia-me deslocada, como se estivesse a usar uma máscara que toda a gente conseguia ver através. As minhas amigas, a Inês e a Sofia, vieram ter comigo.

— Mariana, estás tão gira! — disse a Inês, sincera. — Adoro o teu vestido!

Mas eu não conseguia acreditar. A voz da minha mãe ecoava-me na cabeça: “Toda a gente vai rir-se de ti.” Olhei à volta, à procura de olhares trocistas, de sorrisos maldosos. Mas ninguém parecia reparar em mim. Ou talvez eu já estivesse demasiado magoada para ver outra coisa.

Durante o baile, tentei divertir-me. Dancei com as minhas amigas, tirei fotografias, até sorri para alguns colegas. Mas por dentro sentia-me vazia. Cada vez que alguém olhava para mim, eu imaginava o que estariam a pensar. Será que estavam a rir-se? Será que achavam que eu era ridícula?

Quando cheguei a casa, já tarde, encontrei os meus pais à espera na sala. O meu pai perguntou, sem levantar os olhos do telemóvel:

— Então, correu bem?

— Sim — respondi, seca. Não queria falar. Não queria chorar à frente deles.

A minha mãe olhou para mim com um ar estranho, como se quisesse dizer alguma coisa, mas acabou por se calar. Subi para o quarto e fechei a porta com força. Sentei-me na cama, ainda com o vestido vestido, e chorei tudo o que tinha guardado durante a noite.

Nos dias seguintes, mal falei com os meus pais. Eles pareciam não perceber o que tinham feito. Continuavam com as suas rotinas, como se nada tivesse acontecido. Só o Tiago, numa noite em que estávamos sozinhos na cozinha, se aproximou de mim.

— Desculpa por ter gozado contigo — disse ele, baixinho. — Eu só queria brincar…

Olhei para ele, surpresa. Nunca o tinha visto assim. — Não faz mal — menti. Mas fazia. Doía muito.

Na escola, as coisas também não melhoraram logo. Senti-me insegura durante semanas. Passei a duvidar de todas as minhas escolhas, a perguntar-me se era mesmo tão ridícula como diziam. Comecei a vestir-me de forma mais discreta, a tentar passar despercebida. As minhas amigas notaram a mudança.

— Mariana, o que se passa contigo? — perguntou a Sofia um dia, no recreio.

— Nada — respondi, encolhendo os ombros.

Mas ela insistiu. — Não és tu mesma. Tens andado tão calada…

Queria contar-lhe tudo, mas sentia vergonha. Vergonha de ter sido tão afetada por uma simples opinião. Vergonha de não conseguir ultrapassar aquilo.

Foi só meses depois, numa aula de Educação Visual, que comecei a recuperar alguma confiança. A professora pediu-nos para desenhar algo que nos fizesse sentir felizes. Sem pensar muito, desenhei uma menina com um vestido azul-claro, a dançar sozinha numa sala cheia de luzes. Quando a professora viu o desenho, sorriu.

— Está lindo, Mariana. Parece que essa menina está mesmo feliz. — Pela primeira vez em muito tempo, senti orgulho em mim mesma.

Nessa noite, mostrei o desenho à minha mãe. Ela olhou para ele durante muito tempo, em silêncio. Depois, abraçou-me.

— Desculpa, filha. Acho que fui demasiado dura contigo naquele dia. Só queria proteger-te…

Chorei no seu ombro, sem conseguir dizer nada. Talvez ela nunca entendesse completamente o que aquele momento tinha significado para mim. Mas aquele pedido de desculpas foi um começo.

Hoje, anos depois, ainda me lembro daquela noite como se tivesse acontecido ontem. Aprendi que as palavras podem doer mais do que qualquer coisa física. Aprendi que, às vezes, quem mais amamos pode ser quem mais nos magoa. Mas também aprendi que é possível perdoar e seguir em frente.

Pergunto-me muitas vezes: quantas vezes deixamos de ser quem somos só porque alguém nos disse que não devíamos? E vocês, já sentiram que uma simples frase vos mudou para sempre?