A Mulher Que Nunca Fui Para Ti: O Despertar de Ricardo

— Não aguento mais, Ricardo! — gritei, a voz embargada, enquanto segurava o pano da loiça com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos.

Ele nem sequer levantou os olhos do telemóvel. O som das notificações parecia mais importante do que o meu desespero. — Outra vez essa conversa, Sofia? — murmurou, como se eu fosse uma criança a fazer birra.

Naquele momento, percebi que já não era só tristeza. Era raiva, era frustração, era o peso de anos a tentar ser a mulher perfeita para um homem que nunca quis saber quem eu realmente era.

Lembro-me do início, há dez anos, quando tudo parecia promissor. Casámos na igreja da aldeia, com arroz a chover sobre nós e promessas sussurradas ao ouvido. Eu acreditava que o amor bastava. Que bastava cozinhar-lhe o prato favorito — bacalhau à Brás — e sorrir mesmo quando estava cansada do trabalho no hospital. Que bastava engolir as palavras quando ele chegava tarde, cheirando a cerveja e a conversa de café.

Mas os anos passaram e fui-me apagando. Primeiro deixei de ir ao ginásio porque ele dizia que “não havia tempo para futilidades”. Depois deixei de sair com as amigas porque “uma mulher casada não anda por aí à noite”. Até a minha mãe notou: — Sofia, estás tão magra… e esses olhos tristes? — Mas eu respondia sempre: — Está tudo bem, mãe. O Ricardo trabalha muito, é só cansaço.

A verdade é que me tornei invisível dentro da minha própria casa. O nosso filho, Tiago, cresceu a ver-me calada, sempre a tentar evitar discussões. Quando ele fazia birra, Ricardo gritava: — Cala-te, miúdo! A tua mãe não sabe educar-te! — E eu ficava ali, imóvel, sentindo-me cada vez mais pequena.

Houve um dia em que tudo mudou. Foi numa noite de inverno, com chuva a bater nas janelas e o cheiro a sopa de legumes no ar. Tiago estava doente e eu passara o dia inteiro no hospital e depois em casa com ele ao colo. Ricardo chegou tarde, como sempre, e nem perguntou pelo filho. Só resmungou porque não havia jantar quente à espera.

— Não fazes nada direito! — atirou ele, atirando o casaco para cima do sofá.

Senti algo partir-se dentro de mim. Fui à casa de banho e olhei-me ao espelho: olheiras fundas, cabelo preso à pressa, olhos sem brilho. Quem era aquela mulher? Onde estava a Sofia que sonhava ser médica, viajar pelo mundo, rir até às lágrimas?

Na manhã seguinte, fui trabalhar como sempre. Mas nesse dia, uma colega nova, a Marta, sentou-se ao meu lado no refeitório.

— Estás bem? Pareces cansada… — perguntou ela.

Quase chorei ali mesmo. Pela primeira vez em anos, alguém via-me. Alguém queria saber como eu estava.

Começámos a almoçar juntas todos os dias. Aos poucos fui contando-lhe pedaços da minha vida: o casamento sufocante, os sonhos adiados, o medo de ficar sozinha mas também o medo de nunca sair dali.

— Sofia, tu mereces mais — disse ela um dia. — Não tens de ser mártir para ninguém.

As palavras dela ecoaram em mim durante semanas. Comecei a reparar em pequenas coisas: como Ricardo nunca me agradecia por nada; como só falava comigo para reclamar; como até Tiago já evitava estar na mesma divisão que ele.

Uma noite, depois de mais uma discussão por causa das notas do Tiago na escola, sentei-me na varanda com uma manta e um chá quente. Olhei para as luzes da cidade e pensei: “Será isto a vida que quero para mim? Será isto o melhor que posso dar ao meu filho?”

No dia seguinte, tomei uma decisão. Fui falar com a minha mãe.

— Mãe… acho que quero separar-me do Ricardo.

Ela ficou em silêncio durante uns segundos longos demais. Depois suspirou:

— Sempre soube que este dia ia chegar. Não és feliz há anos, filha. Mas tens de pensar bem… E o Tiago?

O Tiago… O meu maior medo era magoá-lo. Mas também sabia que crescer num ambiente assim não era justo para ele.

Comecei a juntar coragem e documentos. Falei com uma advogada amiga da Marta. Procurei um apartamento pequeno perto da escola do Tiago. Tudo em segredo.

Até que um dia Ricardo encontrou uma mensagem da Marta no meu telemóvel:

— Então agora andas a desabafar com estranhos? Queres ir embora? É isso?

A discussão foi feia. Gritos, acusações, lágrimas. Tiago trancou-se no quarto a chorar.

— Sempre foste ingrata! Dei-te tudo! — berrava Ricardo.

— Deste-me uma prisão! — respondi eu pela primeira vez sem medo.

Naquela noite dormi no sofá. No dia seguinte fiz as malas e levei Tiago comigo para casa da minha mãe.

Os primeiros meses foram difíceis. Tiago chorava muito e perguntava pelo pai. Eu sentia-me culpada por tudo: por ter ficado tanto tempo calada, por ter deixado que nos tratassem assim, por não ter tido coragem antes.

Ricardo tentou convencer-me a voltar:

— Sem ti não sou nada… Não sabia que estavas tão infeliz… Dá-me outra oportunidade…

Mas já era tarde demais. Eu já não era aquela mulher submissa e invisível. Aprendi a gostar de mim outra vez. Voltei ao ginásio, voltei a sair com as amigas (agora também com Marta), voltei a sonhar.

Tiago adaptou-se devagarinho à nova rotina. Hoje é um miúdo mais alegre, menos ansioso. Ainda vê o pai aos fins de semana e eu faço questão de nunca falar mal do Ricardo à frente dele.

Às vezes penso: como é possível termos vivido tanto tempo numa mentira? Quantas mulheres há por aí presas ao medo de partir? Quantos Ricardos só percebem quem perderam quando já é tarde demais?

E vocês? O que fariam no meu lugar? Será que é possível recomeçar depois de tantos anos apagada?