A Casa da Minha Sogra, o Peso no Meu Coração
— Ó Rui, podes vir cá fora um bocadinho? — a voz da minha sogra ecoou pela casa, abafando o som do telejornal. O suor já me escorria pela testa antes mesmo de sair para o quintal. Sabia o que vinha aí. Era sempre assim: quando ela me chamava com aquele tom, era porque precisava de alguma coisa.
— Diz, D. Teresa — respondi, tentando esconder o cansaço na voz.
Ela olhou-me de cima a baixo, como quem avalia um trabalhador antes de lhe dar uma tarefa. — Olha, a casa do Algarve está quase pronta, mas ainda falta acabar o terraço. O teu cunhado não pode ir este fim de semana… Achas que me podes ajudar?
O meu coração apertou-se. Olhei para a janela da sala, onde a minha mulher, Sofia, brincava com a nossa filha, Mariana. Há meses que prometíamos à pequena um passeio ao parque, mas nunca havia tempo — ou melhor, nunca havia tempo para nós.
— Claro, D. Teresa. Eu vou — disse, engolindo em seco.
Ela sorriu satisfeita e voltou para dentro. Fiquei ali parado uns segundos, sentindo o peso invisível daquela decisão. Mais uma vez, os planos da minha família ficavam para segundo plano. Mais uma vez, eu era o genro prestável, o homem que resolve tudo… menos os próprios problemas.
Naquela noite, enquanto jantávamos em silêncio, Sofia olhou-me nos olhos:
— Vais mesmo ao Algarve este fim de semana?
— A tua mãe pediu… Não consegui dizer que não.
Ela suspirou e baixou os olhos para o prato. Mariana olhava de um para o outro, sentindo a tensão sem perceber as palavras.
— Rui, já viste há quanto tempo não fazemos nada juntos? — murmurou Sofia. — Sempre que há um problema na família, és tu que resolves. E nós? Quando é que alguém olha para nós?
Não soube responder. Senti-me pequeno, impotente. A verdade é que desde que casámos, parecia que vivíamos à sombra das vontades dos outros. A casa onde morávamos era da minha sogra — ela tinha dado o apartamento ao filho mais novo quando casou e ficámos nós com o resto. Sempre que havia obras ou problemas na família dela, era eu quem punha as mãos à obra.
No sábado seguinte, acordei cedo e preparei as ferramentas no carro. Mariana apareceu na cozinha de pijama cor-de-rosa.
— Vais trabalhar outra vez, pai?
A pergunta dela doeu mais do que qualquer martelada nos dedos.
— Vou ajudar a avó, filha… Mas prometo que no próximo fim de semana vamos ao parque.
Ela sorriu sem convicção e abraçou-me pelas pernas. Sofia ficou à porta a ver-me sair, os olhos cheios de palavras não ditas.
A viagem até ao Algarve foi longa e silenciosa. Cheguei à casa de férias e encontrei D. Teresa já à espera com uma lista interminável de tarefas. O sol queimava-me a pele enquanto carregava sacos de cimento e subia escadas com telhas às costas. O meu cunhado apareceu ao fim da tarde só para ver como estava a correr — trouxe cervejas e ficou sentado à sombra enquanto eu suava em bica.
— Estás quase a acabar? — perguntou ele, rindo-se. — A mãe tem sempre jeito para arranjar trabalho aos outros!
Sorri amarelo e continuei a trabalhar. No fundo, sabia que ele nunca seria chamado para estas coisas. Era o filho preferido; eu era só o genro útil.
À noite, sentei-me sozinho no terraço inacabado e olhei para as estrelas. Peguei no telemóvel e liguei a Sofia.
— Está tudo bem? — perguntou ela.
— Está… Estou cansado. Sinto que estou sempre a construir casas para os outros e nunca para nós.
Houve silêncio do outro lado.
— Rui… E se dissesses à minha mãe que chega? Que tens uma família também?
Suspirei. — Não é assim tão simples… Ela ajudou-nos tanto…
— Mas a que preço? — murmurou Sofia antes de desligar.
No dia seguinte acordei com dores em todo o corpo. D. Teresa já estava na cozinha a preparar café.
— Dormiste bem? Olha que hoje ainda temos muito para fazer!
Olhei-a nos olhos pela primeira vez em muito tempo.
— D. Teresa… Eu gostava de falar consigo sobre uma coisa.
Ela ergueu uma sobrancelha.
— Eu sei que tem contado comigo para muita coisa… Mas sinto que ultimamente tenho deixado a minha família para trás. A Sofia e a Mariana precisam de mim também.
Ela ficou em silêncio por uns segundos antes de responder:
— Rui, tu és parte desta família também. Sempre foste como um filho para mim.
— Mas não sou seu filho — respondi baixinho. — E às vezes sinto que só sou útil quando há trabalho para fazer.
Ela pareceu magoada, mas não disse nada. O resto do dia foi passado num silêncio desconfortável.
Quando voltei para Lisboa no domingo à noite, encontrei Sofia sentada no sofá com Mariana adormecida ao colo.
— Como correu? — perguntou ela sem olhar para mim.
Sentei-me ao lado dela e abracei-a devagar.
— Disse-lhe o que sentia… Não sei se adiantou alguma coisa. Mas percebi uma coisa: ninguém vai construir a nossa família por nós.
Sofia encostou-se ao meu ombro e chorou baixinho.
Os dias seguintes foram estranhos. D. Teresa não ligou nem apareceu lá em casa como costumava fazer. O meu cunhado mandou uma mensagem seca: “A mãe está chateada contigo.”
No trabalho andava distraído; em casa tentava compensar o tempo perdido com Mariana e Sofia. Fomos finalmente ao parque naquele sábado chuvoso — corremos entre as poças de água e rimos como há muito não fazíamos.
Mas a tensão pairava no ar como uma nuvem pesada. Sentia-me dividido entre a lealdade à família da Sofia e o desejo de proteger a minha própria família nuclear.
Uma noite, depois de deitar Mariana, sentei-me com Sofia na varanda.
— Achas que fiz mal? — perguntei-lhe em voz baixa.
Ela pegou na minha mão e sorriu tristemente.
— Fizeste o que devias ter feito há muito tempo. Mas agora temos de aprender a dizer “não” mais vezes… senão ninguém vai respeitar os nossos limites.
Olhei para as luzes da cidade ao longe e pensei em tudo o que tinha sacrificado em nome da harmonia familiar: fins-de-semana perdidos, aniversários adiados, sonhos adiados indefinidamente.
Será que algum dia vou conseguir construir uma casa — um lar verdadeiro — para a minha família sem ter de destruir pontes com quem nos rodeia? Ou será este o preço inevitável de querer agradar a todos?
E vocês? Quantas vezes já sentiram que estavam a construir os sonhos dos outros enquanto os vossos ficavam por fazer?