Sob a Pele: A História de Inês na Sombra do Seu Casamento

— Outra vez atrasada, Inês? — A voz do Miguel cortou o silêncio da cozinha, enquanto eu tentava limpar os cacos da chávena que acabara de partir. O som da porcelana a estilhaçar-se no chão ecoou mais alto do que qualquer palavra dita naquela casa nos últimos meses.

— Desculpa, Miguel. Não dormi bem — murmurei, sem coragem de o encarar. Senti o olhar dele nas minhas costas, frio como o mármore da bancada.

— Não dormiste bem? Ou andaste outra vez a ler aqueles livros parvos até tarde? — O tom dele era de desdém, mas já me tinha habituado. O Miguel nunca gostou dos meus livros, nem das minhas ideias. Gostava de mim como eu era no início: calada, submissa, sempre pronta a agradar.

A verdade é que já não sabia quem era essa Inês. A mulher que se apaixonou pelo Miguel na faculdade, que sonhava com viagens e tardes de conversa à beira-rio, parecia ter ficado presa numa fotografia antiga. Agora, tudo o que restava era uma rotina sufocante: acordar cedo, preparar o pequeno-almoço, levar os miúdos à escola, trabalhar no escritório do pai dele e regressar a uma casa onde o silêncio era mais pesado do que qualquer discussão.

— Mãe, posso levar o lanche do João hoje? — interrompeu a Leonor, a nossa filha mais velha, com os olhos grandes e ansiosos.

— Claro, querida — respondi, forçando um sorriso. O Miguel bufou e saiu da cozinha sem dizer mais nada.

A porta bateu com força. Senti um aperto no peito. Não era só a chávena que estava partida naquela manhã — era também a minha vontade de continuar a fingir que estava tudo bem.

No trabalho, as coisas não eram melhores. O escritório do meu sogro era um lugar onde todos sabiam tudo sobre todos. A minha cunhada, Filipa, fazia questão de me lembrar todos os dias que eu só estava ali por ser mulher do Miguel.

— Olha, Inês, vê lá se não te esqueces de entregar aqueles papéis ao pai antes do almoço. Sabes como ele detesta atrasos — disse ela, com aquele sorriso falso que me dava náuseas.

— Não te preocupes, Filipa. Já está tudo tratado — respondi, tentando soar confiante.

Mas por dentro sentia-me cada vez mais pequena. Todos os dias eram iguais: trabalho monótono, olhares de julgamento e uma sensação constante de não pertencer ali. Às vezes perguntava-me se alguém reparava no quanto eu estava a desaparecer.

À noite, depois de deitar as crianças, sentava-me na varanda com um copo de vinho barato e olhava para as luzes da cidade. Lisboa parecia tão viva lá fora, tão cheia de possibilidades. Mas eu sentia-me presa num labirinto sem saída.

Foi numa dessas noites que decidi escrever uma carta a mim mesma. Uma carta onde pudesse ser honesta sobre o que sentia:

“Querida Inês,

Quando foi a última vez que sorriste sem medo? Quando foi a última vez que sentiste orgulho em ti? Lembras-te dos teus sonhos? Ainda tens coragem para os procurar?”

As lágrimas caíram sem pedir licença. Senti vergonha por chorar sozinha, mas também um alívio estranho por finalmente admitir que não estava feliz.

No dia seguinte, tentei falar com o Miguel. Esperei até ele chegar do trabalho, sentei-me ao lado dele no sofá e respirei fundo.

— Miguel, podemos conversar?

Ele nem tirou os olhos do telemóvel.

— Agora não dá, Inês. Estou cansado.

— Mas é importante…

— Sempre é importante para ti. Para mim não é nada — atirou ele, levantando-se e indo para o quarto.

Fiquei ali sentada, sozinha na sala escura. Senti raiva dele, mas também de mim própria por nunca conseguir impor-me.

Os dias passaram e comecei a reparar em pequenos sinais: as mensagens apagadas no telemóvel do Miguel, as saídas cada vez mais frequentes à noite “com colegas”, o perfume diferente na roupa dele quando chegava tarde. O medo instalou-se em mim como uma sombra.

Uma noite, decidi segui-lo. Esperei que ele dissesse que ia sair para “trabalhar” e apanhei um táxi atrás dele. Vi-o entrar num restaurante na Baixa com uma mulher loira que eu nunca tinha visto. Riram-se juntos, brindaram ao que parecia ser um segredo partilhado.

Voltei para casa antes dele chegar. Sentei-me na cama dos miúdos e chorei baixinho para não os acordar. Senti-me traída, humilhada e vazia.

No dia seguinte, enfrentei-o.

— Onde estiveste ontem à noite?

Ele olhou para mim com desprezo.

— Não tens nada a ver com isso.

— Tenho sim! Sou tua mulher! — gritei pela primeira vez em anos.

Ele aproximou-se de mim com uma calma assustadora.

— Se não estás feliz, vai-te embora. Ninguém te prende aqui.

As palavras dele foram como um murro no estômago. Sempre pensei que ele me quisesse ali, mesmo que fosse só para manter as aparências. Mas naquele momento percebi: eu era apenas mais um objeto naquela casa.

Passei dias em piloto automático. Levei as crianças à escola, fui trabalhar, sorri para quem esperava que eu sorrisse. Mas por dentro estava a planear a minha fuga.

Contei à minha mãe o que se passava. Ela ouviu-me em silêncio e depois disse:

— Filha, eu sempre soube que tu eras mais forte do que pensas. Não fiques onde não és feliz só porque tens medo do desconhecido.

Essas palavras deram-me coragem. Comecei a procurar um apartamento pequeno perto do trabalho e pedi transferência para outro departamento onde não tivesse de lidar com a família do Miguel.

Quando finalmente contei às crianças que íamos mudar de casa, a Leonor abraçou-me com força e disse:

— Mãe, eu só quero ver-te feliz outra vez.

Na primeira noite na nova casa, dormimos todos juntos no colchão da sala porque ainda não tínhamos móveis suficientes. Mas senti uma paz que já não conhecia há anos.

O Miguel tentou convencer-me a voltar quando percebeu que eu estava mesmo decidida. Prometeu mudar, pediu desculpa pelas traições e pelos anos de indiferença. Mas já era tarde demais.

Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente no espelho. Uma mulher cansada mas livre. Uma mãe imperfeita mas presente. Uma Inês que voltou a sonhar.

Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres vivem presas em casamentos onde já não existe amor? Quantas têm medo de recomeçar? E vocês… já sentiram essa coragem a nascer dentro do peito?