“Queres um filho? Primeiro, sai da minha casa”: Como a minha sogra quase destruiu o meu casamento
— Não aguento mais, Jorge! Ou ela sai, ou eu saio! — gritou a Mariana, com os olhos vermelhos de tanto chorar, a voz trémula de raiva e cansaço. O eco das palavras dela ainda ressoa na minha cabeça, como se cada sílaba fosse um prego a cravar-se no meu peito.
A minha sogra, Dona Lurdes, estava sentada à mesa da cozinha, a mexer o chá com uma colher de prata que trouxe do Porto há mais de trinta anos. Fingiu não ouvir, mas eu sabia que cada palavra era uma faca. Mariana olhou para mim à espera de uma resposta, mas eu só consegui baixar os olhos para o chão, sentindo-me um miúdo apanhado a fazer asneira.
Tudo começou há doze anos, quando o pai da Mariana morreu subitamente de um ataque cardíaco. Dona Lurdes ficou sozinha na casa grande de Matosinhos e, por insistência da minha mulher — que sempre foi sensível ao sofrimento dos outros — trouxemo-la para o nosso apartamento em Lisboa. No início, parecia temporário. Mas os meses passaram, depois os anos, e Dona Lurdes foi-se enraizando na nossa rotina como uma árvore velha e teimosa.
Ao princípio, até foi bom. Ela ajudava com as crianças, fazia sopa de legumes como ninguém e contava histórias do tempo da outra senhora. Mas com o tempo, tudo mudou. Começou a criticar a forma como educávamos os nossos filhos — “Na minha altura não era assim!” — e a intrometer-se em cada decisão. Mariana tentava impor limites, mas Dona Lurdes era mestre na arte da culpa: “Se não fosse eu, vocês nem conseguiam sair para trabalhar!”.
As discussões começaram a ser diárias. Mariana queria privacidade, queria o nosso espaço. Eu tentava ser diplomático, mas acabava sempre no meio do fogo cruzado. Os miúdos começaram a fechar-se nos quartos. Eu próprio comecei a chegar mais tarde do trabalho só para evitar o ambiente pesado em casa.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre o jantar — Dona Lurdes insistia que feijão preto não era comida de gente — Mariana explodiu:
— Jorge, não aguento mais! Isto não é vida! Quero a minha casa de volta!
Olhei para ela e vi nos olhos dela a mulher por quem me apaixonei: decidida, apaixonada, mas agora exausta. Tentei argumentar:
— Mariana, ela não tem para onde ir…
— Não me interessa! Não posso viver assim! — gritou ela, batendo com a porta do quarto.
Nessa noite dormi no sofá. Dona Lurdes apareceu às três da manhã com um cobertor e um chá quente.
— Sabes, Jorge… A Mariana sempre foi dramática. Isto passa-lhe — disse ela num sussurro.
Mas não passou. Pelo contrário. Mariana começou a sair mais vezes sozinha, a chegar tarde. Um dia chegou a casa e disse-me que ia passar uns dias em casa de uma amiga. Os dias tornaram-se semanas. Depois meses.
Foi assim que fiquei sozinho com Dona Lurdes e os miúdos. Ela assumiu o comando da casa como se fosse uma general reformada. Os meus filhos começaram a chamar-lhe “mãe” sem querer. Eu sentia-me cada vez mais pequeno dentro da minha própria vida.
Um ano depois, recebi uma carta da Mariana. Tinha arranjado trabalho em Nova Iorque e queria recomeçar do zero. Pediu-me desculpa por tudo e disse que precisava de se encontrar.
Fiquei devastado. Senti-me traído, abandonado… mas também aliviado. Pela primeira vez em anos, senti que podia respirar sem aquele peso constante no peito.
Os meses passaram e tentei reconstruir a minha vida. Conheci a Ariana num jantar de amigos em comum. Era diferente da Mariana: espontânea, divertida, cheia de sonhos. Apaixonei-me rapidamente e ela trouxe uma nova luz à minha vida.
Mas Dona Lurdes não gostou nada da novidade.
— Essa rapariga só quer saber do teu dinheiro — dizia ela sempre que podia.
Ariana tentou ser simpática no início, mas rapidamente percebeu que Dona Lurdes nunca iria aceitá-la.
— Jorge, eu gosto muito de ti… mas não consigo viver assim — disse-me Ariana numa noite em que Dona Lurdes fez um escândalo porque Ariana usou o seu prato favorito sem pedir licença.
— O que é que queres dizer? — perguntei eu, já a sentir o chão fugir-me dos pés.
— Quero dizer que ou ela sai desta casa… ou eu não consigo construir uma família contigo. Não quero criar um filho neste ambiente tóxico.
Fiquei em silêncio. Olhei para Ariana e vi nos olhos dela o mesmo desespero que vi na Mariana anos antes.
Nessa noite não dormi. Passei horas a andar pela sala escura, ouvindo o tique-taque do relógio antigo da Dona Lurdes. Pensei nos meus filhos, na solidão da minha sogra, no medo de ficar sozinho outra vez…
No dia seguinte sentei-me com Dona Lurdes na cozinha.
— Mãe… precisamos de conversar — disse-lhe finalmente, usando pela primeira vez aquele termo tão pesado.
Ela olhou para mim com aqueles olhos azuis frios como gelo.
— Vais mandar-me embora? Depois de tudo o que fiz por ti?
— Não é isso… Mas preciso de construir a minha vida. Preciso de espaço para ser feliz outra vez.
Ela levantou-se devagar e saiu da cozinha sem dizer palavra. Durante dias não me falou. Os miúdos também ficaram revoltados: “Vais pôr a avó fora de casa?” perguntavam-me com lágrimas nos olhos.
Senti-me o pior homem do mundo. Mas Ariana estava firme:
— Se queres mesmo ter um filho comigo… tens de mostrar que és capaz de proteger a nossa família.
Foi então que percebi: estava preso entre duas mulheres que amava de formas diferentes — uma pelo passado e outra pelo futuro.
Com muita dificuldade arranjei um pequeno apartamento para Dona Lurdes perto da nossa casa. Ajudei-a na mudança e prometi visitá-la todos os dias.
No início ela recusou-se a falar comigo. Mas aos poucos foi aceitando a nova realidade. Os meus filhos passaram a visitá-la aos fins-de-semana e até começaram a gostar do novo espaço dela.
Ariana engravidou pouco tempo depois. Quando nasceu o nosso filho, levei-o à casa da Dona Lurdes. Ela chorou ao pegar nele ao colo e disse-me:
— Fizeste bem em escolher-te a ti próprio desta vez.
Agora olho para trás e pergunto-me: teria feito tudo diferente se soubesse o preço? Quantos casamentos portugueses são destruídos por não sabermos dizer “basta” à nossa própria família?