Quando o Amor se Torna Dívida: Confissões de uma Esposa Portuguesa

— Maria, onde está o talão do supermercado? — perguntou o João, com aquela voz seca que ultimamente parecia ser a única que conhecia.

Olhei para ele, cansada, com as mãos ainda molhadas da loiça. O cheiro do detergente misturava-se com o aroma do café frio na bancada. — Está na gaveta, junto com os outros. Porquê?

Ele não respondeu logo. Abriu a gaveta, remexeu nos papéis, tirou o talão e começou a passar os olhos linha por linha. Senti o estômago apertar-se, como se cada item ali listado fosse uma acusação. “Iogurtes de marca? Outra vez? Maria, já falámos disto. Há opções mais baratas.”

Respirei fundo. Não queria discutir outra vez. Mas era sempre assim, ultimamente. Desde que o João perdeu o emprego na fábrica de calçado em São João da Madeira, tudo mudou. No início, pensei que era só uma fase. Que ele ia encontrar outro trabalho e que tudo voltaria ao normal. Mas os meses passaram, e o dinheiro começou a faltar.

No princípio, eu compreendia. O medo dele era real: as contas a acumular-se, a renda da casa, a escola do nosso filho, o Tomás. Mas depois veio a desconfiança. O João começou a controlar tudo: quanto gastava no supermercado, quanto punha de gasolina no carro, até quanto custava o pão ao pequeno-almoço.

Uma noite, depois de deitar o Tomás, sentei-me ao lado dele no sofá. — João, assim não dá. Não podemos viver a contar cada cêntimo. Isto está a matar-nos.

Ele olhou para mim com olhos cansados, mas duros. — Achas que gosto disto? Achas que é fácil para mim? Eu só quero garantir que não nos falta nada.

— Mas está-nos a faltar tudo! — gritei, sem conseguir conter as lágrimas. — Falta-nos alegria, falta-nos paz! Até o Tomás já percebe que algo não está bem.

O João levantou-se bruscamente e saiu da sala. Fiquei ali sozinha, abraçada à almofada, a ouvir o silêncio pesado da casa.

Os dias seguintes foram iguais: discussões por causa das contas, silêncios longos à mesa do jantar, olhares evitados. Comecei a sentir-me invisível. Trabalhava como auxiliar numa escola primária e trazia para casa tudo o que podia: fruta que sobrava dos lanches das crianças, até papel higiénico quando havia stock a mais.

A minha mãe ligava-me todos os domingos. — Filha, estás bem? — perguntava ela, sempre desconfiada.

— Estou, mãe. Só cansada.

Ela sabia que eu mentia. Um dia apareceu lá em casa sem avisar e apanhou-me a chorar na cozinha.

— Maria, não podes deixar que ele te trate assim. O dinheiro vai e vem, mas o respeito não se pode perder.

— Eu sei, mãe… mas ele não era assim antes. Sinto que perdi o homem com quem casei.

A minha mãe suspirou e abraçou-me. — Às vezes é preciso perder para perceber o que realmente importa.

As palavras dela ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Comecei a reparar em pequenas coisas: como o João já não sorria para mim; como evitava tocar-me; como até o Tomás preferia brincar sozinho no quarto do que estar connosco na sala.

Uma noite ouvi-os discutir no quarto do Tomás:

— Pai, porque é que estás sempre zangado com a mãe?

— Não estou zangado… só estou preocupado.

— Mas eu não gosto quando gritam.

O João saiu do quarto e passou por mim no corredor sem dizer nada. Fui até ao Tomás e sentei-me na cama dele.

— Sabes, filho… às vezes os adultos têm problemas difíceis de resolver. Mas tu nunca és culpado disso.

Ele abraçou-me com força e senti-me ainda mais pequena.

O tempo foi passando e as coisas só pioraram. O João arranjou um trabalho temporário numa oficina de automóveis em Oliveira de Azeméis, mas ganhava pouco e vinha sempre exausto para casa. A tensão entre nós era insuportável.

Um sábado à tarde, depois de mais uma discussão por causa da conta da luz — “Maria, deixaste as luzes acesas outra vez!” — decidi sair de casa para respirar. Fui até ao parque onde costumávamos passear quando éramos namorados. Sentei-me num banco e chorei como há muito não chorava.

Uma senhora idosa sentou-se ao meu lado e ficou em silêncio durante uns minutos antes de falar:

— Às vezes é preciso coragem para admitir que já não somos felizes.

Olhei para ela surpreendida. Ela sorriu-me com ternura.

— Eu também fui casada muitos anos… Aguentei mais do que devia porque achava que era isso que se esperava de mim. Mas aprendi que ninguém pode viver só de sacrifícios.

Aquelas palavras tocaram-me fundo. Voltei para casa decidida a falar com o João.

Esperei até o Tomás estar a dormir e sentei-me à mesa da cozinha com ele.

— João, precisamos de ajuda. Não podemos continuar assim. Eu amo-te, mas isto está a destruir-nos.

Ele ficou calado durante muito tempo. Finalmente falou:

— Tenho vergonha… Sinto-me um fracasso. Não consigo dar-vos aquilo que merecem.

Peguei-lhe nas mãos:

— O que eu quero é ter-te comigo… Não preciso de luxos nem de contas perfeitas. Preciso do homem por quem me apaixonei.

Chorámos juntos nessa noite pela primeira vez em muitos meses.

Decidimos procurar ajuda: fomos falar com uma psicóloga do centro de saúde local e começámos a frequentar sessões de terapia de casal. Não foi fácil — houve recaídas, discussões antigas voltaram à tona, mágoas acumuladas explodiram em lágrimas e gritos.

Mas aos poucos fomos reaprendendo a comunicar sem acusações nem cobranças. O João começou a aceitar trabalhos extra aos fins-de-semana e eu consegui um aumento na escola onde trabalhava.

O dinheiro continuava apertado, mas já não era o centro da nossa vida. Voltámos a rir juntos à mesa do jantar; voltámos a passear ao domingo; voltámos a ser uma família.

Hoje olho para trás e vejo quanto sofrimento poderia ter sido evitado se tivéssemos pedido ajuda mais cedo… Se tivéssemos falado em vez de nos calarmos; se tivéssemos confiado um no outro em vez de nos culparmos mutuamente.

Pergunto-me quantas famílias portuguesas vivem presas neste ciclo de medo e silêncio… Quantas mulheres sentem o peso da culpa por algo que não controlam? Será que é preciso chegar ao limite para percebermos que amor não se mede em euros?