Quando o Amor se Torna Cuidado: A História de Carolina e Vicente
— Não, Vicente! Assim não! Vais arrancar-me metade do cabelo! — gritei, sentindo as lágrimas a ameaçarem-me os olhos, não só pela dor física, mas pela humilhação de precisar dele até para isto.
Ele largou a escova, as mãos a tremerem ligeiramente. — Desculpa, Carolina. Estou a tentar… — A voz dele saiu baixa, quase um sussurro, carregada de frustração e culpa.
Olhei para o espelho e vi o reflexo de uma mulher que já não reconhecia. O rosto inchado pelos corticoides, o cabelo ralo e sem brilho, os ombros caídos. Lembrei-me de como era antes da doença: ativa, independente, sempre pronta para um passeio à beira-rio ou uma tarde de compras com a minha irmã, Teresa. Agora, até pentear-me era uma batalha.
A esclerose múltipla chegou sem aviso há dois anos. Começou com um formigueiro nas pernas, depois vieram as quedas e, por fim, a cadeira de rodas. O diagnóstico foi um murro no estômago. Vicente ficou em silêncio durante dias, como se estivesse a tentar acordar de um pesadelo. Eu chorei até não ter mais lágrimas.
No início, tentei manter alguma autonomia. Mas a doença foi implacável. Primeiro precisei de ajuda para vestir-me. Depois para tomar banho. Por fim, para pentear o cabelo — aquele gesto tão simples que sempre fiz sem pensar.
Vicente nunca foi homem de grandes palavras ou gestos românticos. Era prático, metódico, quase frio. Trabalhava como contabilista numa empresa em Vila Nova de Gaia e gostava das coisas no seu lugar. O nosso casamento era feito de rotinas: café com leite às sete da manhã, sopa ao jantar, televisão antes de dormir. Nunca imaginei que ele seria capaz de me surpreender.
Mas surpreendeu.
— Carolina, deixa-me tentar outra vez — pediu ele nesse dia, pegando na escova com mais delicadeza.
Fechei os olhos e inspirei fundo. Senti os dedos dele separarem cuidadosamente as madeixas, a escova deslizar devagar pelo cabelo. Não ficou perfeito — longe disso — mas estava melhor do que antes. E naquele momento percebi: o amor também é isto. É aprender a fazer o que nunca imaginámos por quem amamos.
Os dias seguintes foram um teste à nossa paciência e ao nosso casamento. Vicente via tutoriais no telemóvel enquanto eu resmungava e chorava. Houve dias em que quis desistir de tudo — dele, da vida, de mim própria. Mas ele nunca desistiu de mim.
A família não ajudava. A minha mãe dizia que devia contratar uma cuidadora: “O Vicente não tem jeito para isso, filha.” A minha irmã Teresa criticava: “Se fosses tu no lugar dele, já tinhas ido embora.” Até os vizinhos comentavam: “Coitado do Vicente, tão novo e já com tanto peso às costas.”
Mas ninguém via o que eu via: o esforço dele em cada gesto, o olhar atento quando me sentia pior, as mãos calejadas de tanto me levantar da cadeira ou me ajudar no banho.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre o meu cabelo — agora curto porque já não aguentava vê-lo cair — sentei-me ao lado dele na cama e perguntei:
— Porque é que continuas?
Ele olhou-me nos olhos e respondeu:
— Porque prometi amar-te na saúde e na doença. E porque ainda és tu, Carolina. Mesmo quando não te reconheces ao espelho.
Chorei baixinho no ombro dele. Pela primeira vez em muito tempo senti-me amada — não pela mulher que fui, mas pela mulher que sou agora.
A rotina mudou. Vicente tornou-se especialista em tranças simples e rabos-de-cavalo desalinhados. Às vezes ria-se dos seus próprios desastres capilares:
— Se calhar devia abrir um salão aqui em casa! — brincava ele.
Comecei a partilhar as nossas tentativas nas redes sociais. Não esperava nada disso — mas as pessoas começaram a comentar, a enviar mensagens de apoio e até sugestões de penteados fáceis para quem tem pouca mobilidade. Uma senhora do Porto enviou-nos um vídeo a mostrar como usar lenços coloridos para disfarçar os dias maus do cabelo.
A nossa história espalhou-se. Fomos convidados para falar numa rádio local sobre o que significa cuidar e ser cuidado. Vicente ficou nervoso:
— Eu não sou herói nenhum… Só faço o que qualquer marido devia fazer.
Mas eu sabia que não era verdade. Nem todos ficam quando a vida se complica. Nem todos aprendem a pentear o cabelo da mulher quando podiam simplesmente fugir ou delegar essa tarefa.
Houve dias em que me odiei por depender tanto dele. Senti vergonha quando precisei que ele me limpasse depois de ir à casa de banho ou me desse banho como se fosse uma criança. Mas ele nunca mostrou repulsa ou cansaço — só amor e paciência.
A doença continua a avançar. Há dias em que mal consigo mexer as mãos ou falar sem gaguejar. Mas há também dias bons: quando conseguimos sair juntos para tomar um café na esplanada ou quando Vicente acerta finalmente num penteado bonito e eu sinto-me mulher outra vez.
A família acabou por aceitar a nossa nova rotina. Teresa pediu desculpa por ter duvidado dele. A minha mãe começou a trazer bolos caseiros aos domingos e até aprendeu a fazer massagens nas minhas pernas para aliviar as dores.
Hoje olho para trás e percebo que o amor não é feito só de paixão ou promessas bonitas. É feito destes pequenos gestos diários — às vezes desajeitados, outras vezes perfeitos na sua imperfeição.
Sei que o futuro é incerto. Sei que posso perder ainda mais autonomia ou até a capacidade de falar. Mas sei também que Vicente estará ao meu lado — com uma escova na mão e um sorriso tímido nos lábios.
Pergunto-me muitas vezes: quantos amores sobrevivem à doença? Quantos casais conseguem reinventar-se quando tudo muda? E vocês… já pensaram no que fariam se tivessem de cuidar da pessoa que amam assim?