Quando a Verdade Dói Mais do que a Mentira: O Dia em que o Meu Mundo Ruiu
— Maria, precisamos de falar. — A voz da Ana soava trémula, mas determinada. Eu estava a arrumar a loiça do jantar, os gestos automáticos, a cabeça já meio cansada depois de mais um dia no escritório da Câmara Municipal. Olhei para ela, a colega que se tornara amiga ao longo dos anos, e vi nos olhos dela algo estranho, uma mistura de culpa e coragem.
— O que se passa, Ana? — perguntei, tentando sorrir, sem imaginar que aquele momento ia dividir a minha vida em antes e depois.
Ela hesitou, respirou fundo. — É sobre o Adam…
O nome do meu marido caiu entre nós como uma pedra no lago. Senti o estômago apertar-se, mas forcei um riso. — O Adam? O que é que ele fez agora? Esqueceu-se de pagar a conta da luz outra vez?
Ana baixou os olhos. — Não, Maria. Eu… eu não sei como te dizer isto. Mas não posso continuar a olhar-te nos olhos sem te contar. Eu e o Adam… nós tivemos um caso.
O mundo parou. O barulho da rua desapareceu, o tilintar dos pratos ficou distante. Só ouvi aquela frase ecoar na minha cabeça: “Nós tivemos um caso”. Senti as pernas fraquejarem e apoiei-me à bancada.
— Tu… estás a brincar comigo? — sussurrei, incapaz de acreditar.
Ela abanou a cabeça, lágrimas nos olhos. — Não estou. Acabou há meses, mas eu não aguento mais esta mentira.
Fiquei ali, imóvel, enquanto Ana chorava baixinho. O Adam… o meu Adam? O homem com quem partilhei trinta anos de vida, duas filhas adultas, uma casa quase paga e sonhos de uma reforma tranquila no Alentejo? Traiu-me com a minha colega? Com a minha amiga?
A raiva veio depois do choque. Uma raiva surda, quente, que me fez atirar um prato ao chão. — Sai daqui! — gritei. — Sai já daqui!
Ana saiu a correr, soluçando. Fiquei sozinha na cozinha, rodeada de cacos.
Naquela noite não dormi. Fiquei sentada na sala escura, a ouvir o tique-taque do relógio e o som distante dos carros na rua. Quando Adam chegou do trabalho, olhou para mim e percebeu logo que algo estava errado.
— Maria? Estás bem?
Levantei-me devagar. — Sabes o que é pior do que ser traída? É saber pela boca da outra pessoa. Nem coragem tiveste para me dizer tu próprio.
Ele empalideceu. — A Ana contou-te?
— Contou. E agora quero saber: porquê? Porquê agora? Depois de tudo o que passámos juntos?
Adam sentou-se no sofá, as mãos a tremer. — Eu… não sei explicar. Senti-me perdido, velho… Tu estavas sempre cansada, as miúdas já não precisam de nós… A Ana apareceu e eu deixei-me levar.
— Então foi por tédio? Por vaidade? — cuspi as palavras como veneno.
Ele chorou. Pela primeira vez em anos vi o Adam chorar como uma criança. Mas não consegui sentir pena dele. Só dor e desprezo.
Os dias seguintes foram um pesadelo. As minhas filhas, Inês e Joana, ficaram em choque quando contei. A Inês gritou com o pai ao telefone; a Joana recusou-se a falar-lhe durante semanas. A minha mãe ligava todos os dias: “Mariazinha, volta para casa! Não fiques sozinha nessa tristeza.” Mas eu não queria voltar à aldeia onde todos sabiam tudo de toda a gente.
No trabalho, os olhares pesavam sobre mim como pedras. Alguns colegas cochichavam nos corredores; outros evitavam-me por completo. A Ana pediu transferência para outro departamento. Nunca mais lhe falei.
As noites eram as piores. Deitava-me na cama vazia e sentia o cheiro dele ainda nos lençóis. Lembrava-me dos domingos preguiçosos, das férias em Lagos quando as miúdas eram pequenas, das promessas sussurradas ao ouvido nas noites frias de inverno.
Perguntava-me vezes sem conta: onde é que falhei? O que podia ter feito diferente? Será que fui demasiado dura? Demasiado ausente?
O Adam tentou pedir desculpa mil vezes. Mandava mensagens: “Perdoa-me”, “Não sei viver sem ti”, “Fui um idiota”. Mas cada palavra dele era sal na ferida.
Um dia, depois de mais uma noite em claro, decidi sair de casa cedo e caminhar até à praia da Costa da Caparica. Sentei-me na areia fria e chorei tudo o que tinha para chorar. Uma senhora idosa sentou-se ao meu lado e ofereceu-me um lenço.
— Está tudo bem, filha?
Olhei para ela e desatei a falar: contei-lhe tudo, como se fosse uma velha amiga. Ela ouviu em silêncio e depois disse:
— Os homens são todos iguais, mas nós é que decidimos se queremos continuar a sofrer por eles ou não.
Aquelas palavras ficaram comigo durante dias.
Comecei a fazer pequenas mudanças: mudei os móveis da sala; pintei as paredes do quarto; cortei o cabelo curto como nunca tive coragem antes; inscrevi-me num curso de cerâmica no centro cultural do bairro.
As minhas filhas começaram a vir jantar mais vezes lá a casa. Ríamos juntas das minhas tentativas desastrosas de fazer pratos de barro; chorávamos juntas quando a saudade apertava demais.
O Adam mudou-se para um apartamento minúsculo perto do trabalho. Tentou reaproximar-se das filhas, mas elas mantinham distância.
Um dia encontrei-o no supermercado. Estava mais magro, envelhecido.
— Maria… — começou ele.
Levantei a mão para o calar.
— Não quero ouvir desculpas nem promessas vazias. Quero apenas paz.
Ele assentiu em silêncio e afastou-se.
Os meses passaram devagarinho. Aprendi a gostar da minha própria companhia: ia ao cinema sozinha, passeava pelo Jardim da Estrela aos domingos de manhã, lia romances até tarde sem ter de apagar a luz para não incomodar ninguém.
Uma noite sentei-me à mesa da cozinha com um copo de vinho e escrevi uma carta à Ana. Não para perdoá-la — ainda não conseguia — mas para lhe dizer que já não lhe guardava ódio. Que cada uma de nós tinha seguido caminhos diferentes e que desejava sinceramente que encontrasse paz consigo mesma.
Nunca recebi resposta.
Hoje olho para trás e vejo aquela mulher destroçada na cozinha como alguém distante. Ainda dói — claro que dói — mas já não me define.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres portuguesas vivem histórias como esta em silêncio? Quantas têm coragem de recomeçar depois da traição?
E vocês? O que fariam no meu lugar?