Porque é que para ela há sempre mais? – A minha luta pela justiça na família do meu marido
— Outra vez? — pensei, enquanto via a minha sogra, Dona Teresa, a enfiar discretamente um envelope na mão da Catarina, mesmo ali à frente de todos, como se fosse a coisa mais natural do mundo. O Miguel, meu marido, fingia não ver. O meu coração apertou-se. Senti-me invisível, como tantas outras vezes desde que entrei nesta família.
— Precisas de alguma coisa para levar para casa, Ana? — perguntou-me Dona Teresa, com aquele sorriso forçado que já conheço de cor. — Tenho ali uns frascos de compota e uns pepinos em conserva.
— Obrigada, Dona Teresa — respondi, tentando não deixar transparecer o nó na garganta. — Mas já temos muita coisa em casa.
A Catarina sorriu de lado, satisfeita. Ela nunca precisava de pedir nada; tudo lhe era dado sem esforço. Presentes caros no Natal, dinheiro “para ajudar”, viagens pagas à última hora. E nós? Frascos de compota e pepinos. Sempre os restos, sempre o que sobrava.
O Miguel percebeu o meu desconforto e tentou mudar de assunto:
— Mãe, queres que vá buscar mais lenha para a lareira?
— Não te preocupes, filho. O teu pai já tratou disso com o Pedro — respondeu ela, referindo-se ao marido da Catarina. — Vocês aproveitem para descansar.
Descansar? Como é que se descansa num ambiente destes?
Naquela noite, depois do jantar, enquanto todos viam televisão na sala, fui até à cozinha buscar um copo de água. Encontrei a Dona Teresa a arrumar a loiça.
— Ana, sabes que gosto muito de ti, não sabes? — disse ela, sem me olhar nos olhos.
— Sei… — respondi, hesitante.
— Mas a Catarina está a passar uma fase difícil. O Pedro anda com pouco trabalho e ela tem os miúdos pequenos… Preciso de ajudar como posso.
Engoli em seco. Era sempre assim: havia sempre uma justificação para tudo. Mas nunca ninguém perguntava como é que eu estava. Eu também trabalhava horas a fio no hospital, também tinha contas para pagar, também queria sentir-me apoiada.
No regresso a casa, no carro, o silêncio era pesado. O Miguel olhava pela janela, perdido nos seus pensamentos. Não aguentei mais:
— Não vês o que se passa? Porque é que nunca dizes nada?
Ele suspirou:
— Ana, é sempre assim desde pequenos. A minha mãe sempre protegeu mais a Catarina. Eu já me habituei.
— Mas eu não me habituei! — explodi. — Sinto-me uma estranha nesta família! Fazemos tudo por eles e nunca somos reconhecidos!
O Miguel ficou calado. Senti-me sozinha como nunca.
Os meses passaram e as visitas à aldeia tornaram-se cada vez mais penosas. Cada vez que chegávamos, sentia-me menos bem-vinda. A Catarina engravidou novamente e as atenções redobraram-se sobre ela. A sogra organizou um chá de bebé luxuoso; para mim, quando engravidei do nosso primeiro filho, houve apenas um bolo seco e parabéns apressados.
Comecei a evitar as visitas. Inventava turnos extra no hospital ou dizia que estava cansada. O Miguel ia sozinho e voltava ainda mais calado.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre o assunto, ele desabafou:
— Sinto-me dividido. És tu ou a minha família… Não sei o que fazer.
— Não te peço para escolheres — respondi, com lágrimas nos olhos. — Só quero sentir que também pertenço a esta família.
O tempo foi passando e o ressentimento crescia dentro de mim como uma erva daninha. Até que um dia recebi uma chamada inesperada da Dona Teresa:
— Ana… podes vir cá? Preciso de falar contigo.
Fui contrariada, mas curiosa. Quando cheguei, encontrei-a sentada à mesa da cozinha, com os olhos vermelhos.
— A Catarina… foi embora com os miúdos. O Pedro traiu-a — disse ela, num sussurro.
Senti pena dela — da Catarina e da sogra — mas também uma estranha sensação de justiça poética. Pela primeira vez em anos, Dona Teresa olhou para mim como se realmente me visse.
— Desculpa se alguma vez te fiz sentir menos importante — murmurou ela. — Nunca foi minha intenção…
Ficámos ali sentadas em silêncio. Pela primeira vez senti que talvez houvesse espaço para mim naquela família.
O Miguel entrou na cozinha e olhou para nós duas:
— Está tudo bem?
Olhei para ele e depois para Dona Teresa:
— Talvez agora esteja a começar a ficar.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas famílias vivem presas nestes ciclos de favoritismo e ressentimento? Será possível quebrar este padrão sem perdermos quem somos? E vocês… já sentiram que nunca pertenciam verdadeiramente ao lugar onde mais desejavam ser aceites?