O Regresso de Rui: Entre o Perdão e a Dor

— Maria, por favor, deixa-me entrar. Só quero falar contigo. — A voz dele, rouca e baixa, ecoou pelo corredor como um trovão abafado. Fiquei ali, paralisada, com a mão ainda na maçaneta, o coração aos saltos como se quisesse fugir do peito. O cheiro a maçã assada misturava-se agora com uma náusea súbita. Dois anos. Dois anos sem notícias, sem uma carta, sem um telefonema decente. E agora Rui estava ali, à minha frente, com a mesma gabardina puída e aquele olhar que tantas vezes me desarmou.

— O que é que queres, Rui? — perguntei, tentando manter a voz firme. — Vieste buscar as tuas coisas? Ou esqueceste-te de mais alguma coisa além de mim?

Ele baixou os olhos, envergonhado. — Maria… Eu… Eu fiz asneira. Sei disso. Mas preciso falar contigo. Por favor.

Deixei-o entrar, mais por instinto do que por vontade. O silêncio entre nós era pesado, quase palpável. Sentei-me à mesa da cozinha e ele ficou de pé, hesitante, como se não soubesse onde pôr as mãos.

— A Leonor está a dormir — disse eu, quase num sussurro. — Se a acordares…

— Não vim para fazer confusão — interrompeu ele. — Só preciso que me oiças.

Olhei para ele com uma mistura de raiva e pena. Lembrei-me da noite em que me disse que ia trabalhar para França, que era só por uns meses, que era para o bem da família. Lembrei-me das mensagens cada vez mais espaçadas, das desculpas esfarrapadas, até ao silêncio total. E depois, a notícia: Rui estava a viver com outra mulher em Lyon.

— Fala então — disse eu, cruzando os braços.

Ele respirou fundo. — Acabou tudo com a Sílvia. Não era o que eu pensava… Eu sentia-me perdido lá fora. Senti falta de casa, de ti… da Leonor. Fiz tudo mal, Maria. Mas quero voltar. Quero tentar outra vez.

Senti uma gargalhada amarga subir-me à garganta. — Voltar? Assim? Como se tivesses ido só ali ao café?

Ele encolheu-se na cadeira, os olhos húmidos. — Eu sei que não mereço…

— Não sabes nada! — explodi finalmente. — Dois anos! Dois anos em que tive de explicar à Leonor porque é que o pai dela não vinha às festas da escola! Dois anos em que tive de pedir dinheiro à minha mãe porque o teu ordenado nunca mais chegou! Dois anos em que chorei sozinha todas as noites!

O silêncio caiu de novo. Lá fora, ouviam-se os cães do vizinho a ladrar e o vento a bater nos estores.

— Maria… — murmurou ele. — Eu não consigo viver sem vocês.

— Pois devias ter pensado nisso antes de nos trocares por outra — respondi, sentindo as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto.

Ele levantou-se devagar e ajoelhou-se ao meu lado. — Dá-me só uma hipótese… Por favor.

Afastei-me dele instintivamente. A imagem da Sílvia — loira, elegante, francesa — passou-me pela cabeça como uma faca afiada. Quantas noites terá ele passado nos braços dela? Quantas promessas terá feito?

— Achas mesmo que é assim tão simples? Que basta pedires desculpa e tudo volta ao normal?

Ele abanou a cabeça, desesperado. — Não… Mas eu estou disposto a fazer tudo o que for preciso.

Nesse momento ouvi passos leves no corredor. Leonor apareceu à porta da cozinha, esfregando os olhos sonolentos.

— Mãe…? Quem está aí?

O coração apertou-se-me ainda mais. Rui olhou para ela com uma ternura dolorosa.

— Olá, princesa…

Leonor ficou imóvel por um segundo e depois correu para mim, agarrando-se às minhas pernas.

— Mãe… é o pai?

Assenti em silêncio. Ela olhou para ele com um misto de alegria e medo.

— Vais ficar connosco?

Rui chorava abertamente agora. — Se tu e a mãe quiserem…

Ela olhou para mim, os olhos grandes e cheios de esperança.

— Mãe… deixa o pai ficar… por favor?

Senti-me dividida entre o desejo de proteger a minha filha e a raiva surda que me corroía por dentro.

— Leonor… vai para o teu quarto um bocadinho, está bem? A mãe já vai ter contigo.

Ela hesitou mas obedeceu, lançando um último olhar suplicante ao pai.

Quando ficámos sozinhos de novo, Rui limpou as lágrimas com as costas da mão.

— Eu sei que te magoei muito. Sei que não posso apagar o que fiz. Mas quero tentar reparar as coisas…

Levantei-me e fui até à janela. As luzes da rua tremeluziam na noite húmida de outubro. Lembrei-me das manhãs frias em que levava Leonor à escola sozinha; das vezes em que tive de inventar desculpas para os vizinhos; das noites em claro a pensar se ele estaria bem ou sequer se lembrava de nós.

— E se eu não conseguir perdoar-te? — perguntei finalmente.

Ele aproximou-se devagar. — Então vou esperar… O tempo que for preciso.

Ficámos ali em silêncio durante longos minutos. O relógio da sala marcava as horas como se quisesse apressar o inevitável confronto entre passado e futuro.

No dia seguinte, a notícia espalhou-se pela aldeia como fogo em palha seca. A minha mãe apareceu logo cedo, furiosa.

— Maria do Céu! Vais deixar esse homem voltar para casa depois do que ele te fez?

— Mãe… não sei ainda o que vou fazer.

Ela bufou, cruzando os braços sobre o avental florido.

— Ele não merece nem um prato de sopa! Olha para ti… dois anos a sofrer sozinha!

Tentei explicar-lhe que não era assim tão simples; que havia uma criança no meio disto tudo; que eu própria não sabia se era capaz de recomeçar ou se devia fechar aquela porta para sempre.

Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções contraditórias: Leonor colava-se ao pai como se quisesse recuperar todo o tempo perdido; eu observava-os à distância, incapaz de confiar plenamente; Rui tentava ajudar em casa mas cada gesto dele parecia forçado, estranho naquela rotina que já não era dele.

Uma noite, depois de deitar Leonor, sentei-me com ele na sala.

— Porque é que voltaste mesmo? — perguntei-lhe de repente.

Ele olhou para mim com sinceridade dolorosa.

— Porque percebi tarde demais o valor do que tinha aqui. Porque lá fora era só vazio… E porque amo-te ainda.

As palavras dele feriram-me tanto quanto me aqueceram o coração. Queria acreditar nele mas tinha medo; medo de voltar a ser magoada, medo de ser fraca aos olhos dos outros, medo de não conseguir reconstruir nada sobre os escombros do passado.

As discussões começaram logo na semana seguinte: sobre dinheiro, sobre as tarefas da casa, sobre os ciúmes inevitáveis quando via uma mensagem no telemóvel dele ou quando ele demorava mais no café da vila.

— Não confias em mim! — atirou ele numa dessas noites tensas.

— Como posso confiar depois do que fizeste? — respondi eu, sentindo a raiva crescer outra vez.

Houve dias em que pensei mesmo em pedir-lhe para sair; outros em que me imaginei a perdoá-lo e a começar tudo do zero. Mas nada era simples; nada era preto no branco.

A minha irmã Ana veio visitar-me um domingo à tarde e encontrou-nos num desses silêncios pesados.

— Vocês precisam de ajuda — disse ela sem rodeios. — Isto não vai lá só com promessas e lágrimas.

Foi ela quem sugeriu irmos falar com o padre António ou procurar terapia familiar na cidade vizinha. Rui aceitou sem hesitar; eu demorei mais tempo a ceder ao orgulho ferido.

As sessões foram dolorosas mas libertadoras: falámos das mágoas antigas, dos sonhos desfeitos e das pequenas alegrias do quotidiano; chorámos juntos e separados; aprendemos a ouvir sem julgar (ou pelo menos tentámos).

Passaram-se meses até conseguir olhar para Rui sem ver apenas o homem que me traiu mas também aquele com quem partilhei metade da vida; até conseguir rir-me outra vez das pequenas coisas; até conseguir dormir sem acordar sobressaltada com pesadelos do passado.

Hoje ainda não sei se perdoei completamente; talvez nunca perdoe tudo. Mas sei que tentei dar uma segunda oportunidade ao amor — por mim e pela Leonor.

Às vezes pergunto-me: quantos de nós seríamos capazes de recomeçar depois de tanta dor? Será possível reconstruir algo verdadeiro sobre ruínas? E vocês… já perdoaram alguém assim?