O que restou depois da verdade: Trinta anos de casamento e uma traição
— Maria, precisamos conversar. — A voz do António soou rouca, quase irreconhecível, enquanto ele mexia nervosamente na chávena de chá. O relógio da parede marcava onze e meia da noite, e o silêncio da casa parecia pesar toneladas. Senti um arrepio percorrer-me a espinha. Não era habitual ele querer conversar àquela hora, muito menos com aquele tom.
— O que foi agora, António? — tentei soar calma, mas o meu coração já batia descompassado. Os olhos dele fugiam dos meus, fixando-se no tampo gasto da mesa de madeira, onde tantas vezes partilhámos risos e discussões banais.
— Eu… — ele hesitou, respirou fundo — Eu traí-te, Maria. Não foi só uma vez. E já dura há algum tempo.
O mundo parou. O som do vento lá fora, o tique-taque do relógio, até o cheiro do pão fresco que eu tinha acabado de cozer — tudo desapareceu. Só restou aquele vazio ensurdecedor dentro de mim. Trinta anos juntos. Trinta anos de domingos preguiçosos, de férias em Vila Nova de Milfontes, de discussões sobre contas e filhos e sogras. E agora isto.
— Com quem? — perguntei, a voz quase um sussurro. Não sei se queria mesmo saber.
— Não importa… — respondeu ele, baixando ainda mais a cabeça. — O que importa é que eu já não sou o homem que tu pensavas que eu era.
Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Não era ciúme. Não era sequer tristeza. Era uma dor funda, como se alguém tivesse arrancado o chão debaixo dos meus pés. Lembrei-me das vezes em que desconfiei dos telefonemas tardios, das desculpas esfarrapadas para chegar tarde do trabalho, dos aniversários esquecidos. Sempre arranjei justificações: o stress no escritório, a crise dos cinquenta, as preocupações com os nossos filhos, a Beatriz e o Miguel.
Levantei-me devagar, sentindo as pernas trémulas. Fui até à janela da cozinha e olhei para a rua deserta. As luzes dos candeeiros desenhavam sombras longas no alcatrão molhado pela chuva miudinha. Lembrei-me de quando éramos jovens e sonhávamos com uma casa cheia de filhos e netos, com viagens a Paris e tardes preguiçosas na praia da Comporta.
— Porquê? — perguntei finalmente, sem me virar para ele. — Porquê agora? Porquê depois de tudo?
Ouvi-o suspirar atrás de mim.
— Senti-me vazio, Maria. Senti que já não era visto por ti. Que só éramos dois estranhos a partilhar uma casa e contas para pagar. Ela… ela fez-me sentir vivo outra vez.
As palavras dele cortaram-me como facas. Eu também me sentia invisível há anos. Também eu tinha deixado de sonhar, de rir sem motivo, de me arranjar só para ele. Mas nunca pensei em trair. Sempre achei que o amor era feito destes silêncios partilhados, destas rotinas que nos protegiam do caos lá fora.
Naquela noite não dormi. Fiquei sentada na sala, enrolada numa manta, a ouvir os sons da casa adormecida. Lembrei-me do dia em que nos conhecemos na faculdade em Lisboa, das cartas apaixonadas que trocávamos quando ele foi trabalhar para o Porto durante um ano. Lembrei-me do nascimento da Beatriz, do susto quando o Miguel teve pneumonia aos três anos, das noites em claro a fazer contas para pagar a hipoteca.
No dia seguinte, a casa parecia mais fria. António saiu cedo para o trabalho — ou pelo menos foi isso que disse — e eu fiquei sozinha com os meus pensamentos. Liguei à minha irmã Teresa.
— Preciso de falar contigo — disse-lhe, tentando conter as lágrimas.
Ela apareceu meia hora depois, com um bolo de laranja ainda quente e aquele abraço apertado que só as irmãs sabem dar.
— Ele não te merece — disse ela assim que lhe contei tudo. — Mas tu também tens culpa, Maria. Deixaste de lutar por vocês.
As palavras dela doeram mais do que eu esperava. Era verdade? Tinha eu deixado morrer o nosso casamento sem dar por isso? Tinha-me perdido nos papéis de mãe, dona de casa, funcionária pública exausta?
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. António tentava falar comigo, mas eu evitava-o sempre que podia. A Beatriz percebeu logo que algo não estava bem.
— Mãe, o pai fez alguma coisa? — perguntou ela numa noite enquanto jantávamos as duas sozinhas.
Olhei para a minha filha crescida e vi nela um misto de preocupação e medo.
— O pai… errou muito comigo — respondi apenas.
Ela não insistiu, mas vi-lhe as lágrimas nos olhos quando foi para o quarto.
O Miguel ligou-me do Porto dias depois:
— Mãe, ouvi dizer que andas triste… Queres vir passar uns dias cá?
Recusei com um nó na garganta. Não queria fugir dos meus problemas.
Uma semana depois da confissão do António, sentei-me com ele à mesa da cozinha outra vez.
— O que vamos fazer agora? — perguntei-lhe.
Ele olhou para mim com olhos vermelhos e cansados.
— Quero tentar salvar o nosso casamento, Maria. Quero ser digno do teu perdão.
Ri-me amargamente.
— E achas que basta quereres? Achas que se pode colar um vaso partido sem se verem as cicatrizes?
Ele calou-se. Eu também não sabia a resposta.
Começámos terapia de casal por insistência da Teresa e da Beatriz. As sessões eram dolorosas; cada palavra parecia arrancar pedaços antigos e mal sarados do nosso passado juntos.
— O amor não é só paixão — disse-nos a psicóloga numa dessas sessões — É escolha diária. É compromisso mesmo quando tudo parece perdido.
Mas eu já não sabia se queria escolher o António todos os dias. Sentia-me traída não só pela infidelidade dele, mas pela vida rotineira e sem cor em que nos tínhamos deixado cair.
Um dia encontrei uma mensagem no telemóvel dele: “Espero por ti amanhã.” Não era explícita, mas bastou para me fazer perceber que ele ainda não tinha cortado laços com a outra mulher.
Confrontei-o naquela noite:
— Ainda falas com ela?
Ele hesitou antes de responder:
— Sim… mas estou a tentar acabar tudo.
Foi aí que percebi: talvez nunca mais voltássemos ao que éramos antes. Talvez fosse altura de pensar em mim pela primeira vez em muitos anos.
Arrumei algumas roupas numa mala pequena e fui passar uns dias à casa da Teresa em Cascais. Passei horas a caminhar junto ao mar, a ouvir as gaivotas e o rebentar das ondas nas rochas. Senti-me livre e assustada ao mesmo tempo.
Aos poucos fui recuperando partes de mim que julgava perdidas: voltei a pintar (algo que adorava antes dos filhos nascerem), inscrevi-me num curso de culinária italiana na Junta de Freguesia e comecei a sair para cafés com amigas antigas.
António ligava todos os dias no início; depois passou a ligar só ao fim-de-semana. Percebi que também ele estava a tentar encontrar-se no meio dos destroços do nosso casamento.
Depois de dois meses separados, encontrámo-nos num café em Lisboa para conversar sobre o divórcio. Não houve gritos nem acusações; apenas duas pessoas cansadas a tentarem ser honestas uma com a outra pela primeira vez em muitos anos.
— Desculpa por te ter magoado tanto — disse ele baixinho.
— Eu também errei ao deixar-nos chegar aqui — respondi-lhe.
Assinámos os papéis semanas depois no cartório da Baixa. Saí dali com um misto de alívio e tristeza profunda.
Hoje vivo sozinha num pequeno apartamento em Almada com vista para o Tejo. A Beatriz vem jantar comigo às sextas-feiras; o Miguel liga-me todos os domingos à noite para contar novidades do trabalho no Porto. Às vezes sinto falta do António; outras vezes sinto-me finalmente dona de mim mesma.
O que mais me magoou não foi saber com quem ele me traiu — foi perceber porque é que ele o fez e como ambos deixámos morrer aquilo que nos unia sem darmos conta.
Pergunto-me muitas vezes: quantos casais vivem juntos apenas por medo da solidão? Quantos deixam morrer o amor devagarinho sem coragem para enfrentar a verdade? E será possível recomeçar depois dos cinquenta?