“Nunca vais entrar neste apartamento!” — A história de uma nora e a sua sogra em Lisboa

— Não vais entrar neste apartamento, Maria! Nunca! — A voz da Dona Lurdes ecoou pelo corredor do prédio antigo, as palavras cortantes como facas. Eu estava ali, com as chaves na mão, o Rui atrás de mim, cabisbaixo, e o saco das compras a pesar-me no braço. O cheiro a sopa de feijão vinha da porta entreaberta, misturado com o aroma amargo da tensão que pairava no ar.

O Rui tentou intervir, baixinho:
— Mãe, por favor…

Ela nem olhou para ele. Os olhos dela estavam cravados em mim, como se eu fosse uma intrusa na própria casa do meu marido. E era isso mesmo que eu era: uma intrusa. Porque aquele apartamento, apesar de ser o nosso lar há quase dois anos, continuava a ser dela. E ela fazia questão de mo lembrar todos os dias.

Lembro-me do primeiro dia em que entrei ali. O chão rangia sob os meus pés e as paredes estavam cobertas de retratos antigos: o Rui em criança, o pai dele com bigode farto, a Dona Lurdes mais nova, sempre séria. Ela entregou-me as chaves com um sorriso forçado:
— Isto é só enquanto não arranjam nada vosso. Não se habituem demasiado.

Na altura, achei graça. Agora percebo que era um aviso.

Os meses passaram e cada gesto meu era escrutinado. Se mudava um móvel de sítio, ela reparava. Se comprava cortinas novas, ela criticava:
— Estas não combinam com a sala. Não percebo como é que gostas disto.

O Rui tentava apaziguar:
— Deixa lá a Maria, mãe. É só uma cortina.

Mas ela não deixava. Nunca deixava.

As discussões começaram a ser diárias. Pequenas coisas tornavam-se tempestades. Um dia cheguei a casa e ela estava na cozinha, a remexer nos meus armários.
— Só vim ver se tens comida suficiente — disse ela, mas eu sabia que era mentira. Queria ver se eu mantinha tudo como ela gostava.

O Rui trabalhava até tarde e eu ficava sozinha com ela. Às vezes sentia-me uma criança outra vez, sem voz nem voto na minha própria vida. Chorava baixinho na casa de banho para ninguém ouvir.

A minha mãe dizia-me ao telefone:
— Maria, tens de impor respeito! Não podes deixar que ela te trate assim!

Mas como? O apartamento era dela. O Rui era filho único e ela fazia chantagem emocional todos os dias:
— Se não fosse por mim, vocês nem tinham onde cair mortos!

O Rui amava-me, mas amava também a mãe. Ficava dividido. Às vezes discutíamos à noite:
— Rui, não aguento mais! Ou ela ou eu!
— Não digas isso… Ela está sozinha desde que o pai morreu…

E eu sentia-me egoísta por querer paz.

Um dia, depois de mais uma discussão sobre o tapete da entrada — “Esse tapete é horrível!” — decidi sair. Fui para casa da minha mãe durante uns dias. O Rui ligava-me todos os dias:
— Volta para casa… Eu falo com ela…

Mas nada mudava. Quando voltei, encontrei as minhas coisas arrumadas numa caixa no corredor.
— Pensei que já não voltavas — disse ela, fria.

O Rui chorou nesse dia. Eu também.

O tempo foi passando e fui ficando mais dura. Comecei a responder-lhe:
— Dona Lurdes, esta casa também é minha enquanto cá viver.

Ela olhava para mim como se eu tivesse cuspido no chão.

As festas eram um pesadelo. No Natal, sentávamo-nos todos à mesa e ela fazia questão de contar histórias do Rui em criança:
— O meu menino nunca gostou de bacalhau cozido… Não sei porque insistes nisso, Maria…

Eu sorria amarelo e engolia em seco.

O pior foi quando engravidei. Pensei que as coisas iam melhorar. Que ela ia amolecer com a ideia de ser avó. Mas foi pior.
— Não sabes cuidar de ti própria quanto mais de uma criança! — gritou ela quando me viu comer um pastel de nata ao pequeno-almoço.

O Rui defendia-me como podia:
— Mãe, chega!

Mas ela não parava.

No dia em que a minha filha nasceu, a Dona Lurdes apareceu no hospital antes de mim sair da sala de recobro. Pegou na bebé sem pedir licença e disse:
— Finalmente alguém nesta família que vai fazer as coisas como deve ser!

Eu chorei tanto nesse dia que pensei que nunca mais ia conseguir sorrir à minha filha sem sentir culpa.

Os meses seguintes foram um inferno. Ela aparecia todos os dias lá em casa sem avisar. Dizia que vinha ajudar mas só criticava:
— O leite está muito quente! —
— Não sabes dar banho a uma criança? —
— No meu tempo fazia-se assim…

Eu sentia-me cada vez mais pequena.

Uma noite, depois de adormecer a bebé, sentei-me no sofá com o Rui.
— Não aguento mais… — disse-lhe entre lágrimas — Ou arranjamos uma casa nossa ou eu vou-me embora para sempre.

Ele ficou calado muito tempo. Depois abraçou-me e disse:
— Tens razão. Vamos procurar outra casa.

Foi difícil. O dinheiro não chegava para muito e Lisboa está impossível para jovens casais. Mas começámos a procurar mesmo assim.

A Dona Lurdes percebeu logo e fez um escândalo:
— Vão deixar-me sozinha? Depois de tudo o que fiz por vocês?

O Rui chorou outra vez. Eu também.

No dia em que assinámos o contrato do nosso novo T2 em Odivelas, senti-me livre pela primeira vez em anos. Fomos buscar as nossas coisas ao apartamento dela e ela nem apareceu à porta para se despedir.

Durante meses não nos falou. Só quando a neta fez um ano é que apareceu com um bolo e lágrimas nos olhos:
— Desculpa… Eu só queria ajudar…

Não sei se alguma vez vamos ser amigas. Mas agora tenho o meu espaço. A minha família.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem presas ao medo de desagradar às sogras? Quantos casamentos se afundam por falta de coragem para dizer basta?

E vocês? Já sentiram que precisavam fugir para poderem respirar?