Este já não é o homem que eu casei: Como o descontentamento do meu marido está a destruir a nossa família

— Inês, não percebes mesmo nada! — gritou o Miguel, atirando as chaves para cima da mesa da cozinha. O som metálico ecoou pela casa, misturando-se com o choro abafado da Leonor no quarto ao lado. Senti um nó apertar-me a garganta, mas não consegui responder. Olhei para ele, à espera de um gesto de ternura, de um pedido de desculpa, mas só vi frustração e cansaço nos seus olhos.

Nunca pensei que o nosso casamento chegasse a este ponto. Quando conheci o Miguel na faculdade de Letras em Lisboa, ele era divertido, sonhador, cheio de planos para o futuro. Apaixonei-me pelo seu sorriso fácil e pela forma como me fazia sentir especial. Casámos na pequena igreja da minha aldeia, rodeados de amigos e família. Lembro-me de prometer que juntos enfrentaríamos tudo. Mas ninguém me avisou que o “tudo” podia ser tão pesado.

A chegada dos gémeos foi um choque. Tomás nasceu primeiro, chorão e impaciente; Leonor veio logo a seguir, pequenina e frágil. Os primeiros meses foram um turbilhão de noites mal dormidas, fraldas sujas e discussões sussurradas para não acordar os bebés. O Miguel começou a trabalhar mais horas no escritório de advogados onde foi promovido. Eu fiquei em casa, sozinha com as crianças e com uma sensação crescente de invisibilidade.

— A minha mãe diz que devias dar sopa caseira, não esses boiões — atirou ele uma noite, sem sequer olhar para mim.

— A tua mãe não está cá para ver como eles choram quando tento dar-lhes sopa — respondi, tentando controlar a voz.

— Ela criou três filhos sozinha, Inês! Sabes lá tu o que é isso…

Fiquei calada. Não valia a pena discutir com Dona Graça. Desde que os gémeos nasceram, ela aparecia todos os dias lá em casa. Entrava sem bater à porta, criticava tudo: a forma como vestia os bebés, como arrumava a casa, até como cozinhava o arroz. O Miguel parecia não ver nada disto; pelo contrário, defendia-a sempre.

Comecei a sentir-me uma estranha na minha própria casa. Os meus pais moravam longe, no Alentejo, e eu não queria preocupar a minha mãe com os meus problemas. As minhas amigas estavam ocupadas com as suas vidas e eu sentia vergonha de admitir que o meu casamento estava por um fio.

Uma tarde de domingo, enquanto tentava adormecer o Tomás ao colo, ouvi Dona Graça na cozinha:

— O teu pai nunca me deixou ficar em casa sem trabalhar. Uma mulher precisa de ter o seu dinheiro, Miguel.

— A Inês quer ficar com os miúdos — respondeu ele, num tom baixo mas firme.

— Pois… mas depois não te queixes se ela se tornar amarga.

Senti uma lágrima escorrer-me pela face. Era isso que eu estava a tornar-me? Amarga? Olhei para o Tomás, tão pequeno e inocente, e perguntei-me se algum dia ele perceberia o quanto eu abdiquei por ele.

As discussões tornaram-se rotina. O Miguel chegava tarde, jantava em silêncio e passava horas agarrado ao telemóvel. Quando tentava falar sobre nós, ele desviava o olhar ou mudava de assunto.

— Precisas de sair mais — disse-me um dia a minha amiga Sofia ao telefone. — Vem comigo ao yoga! Ou então vamos tomar um café qualquer dia destes.

Mas eu sentia-me presa. Se saísse de casa, Dona Graça aparecia para “ajudar” e acabava por revirar tudo à sua maneira. Uma vez encontrei-a a remexer nas minhas gavetas do quarto.

— Só estava a ver se tinhas roupa para passar — disse ela, com aquele sorriso falso.

O Miguel nunca percebeu como isto me magoava. Pelo contrário, achava que eu devia estar agradecida pela ajuda da mãe dele.

Certa noite, depois de mais uma discussão sobre as vacinas dos gémeos (Dona Graça era contra algumas), perdi as forças:

— Miguel… tu já não és o homem por quem me apaixonei. Não me ouves, não me vês… Sinto-me sozinha nesta casa!

Ele ficou calado durante uns segundos longos demais.

— Talvez estejas mesmo sozinha — murmurou ele antes de sair do quarto.

Chorei baixinho para não acordar as crianças. Senti-me vazia, como se tivesse desaparecido dentro da minha própria vida.

No dia seguinte, Dona Graça apareceu mais cedo do que o costume. Trouxe um bolo de laranja e começou logo a dar ordens:

— Inês, tens de arejar mais esta casa! E olha que os miúdos precisam de sol… Não percebo porque insistes em fechar as janelas!

Respirei fundo e tentei ignorar. Mas quando ela começou a criticar a forma como eu dava banho à Leonor, perdi a paciência:

— Dona Graça, por favor… deixe-me cuidar dos meus filhos à minha maneira!

Ela olhou para mim como se eu fosse uma criança birrenta.

— Os teus filhos? Não te esqueças que são netos meus!

Nesse momento percebi que estava sozinha nesta luta. O Miguel já nem tentava mediar as discussões; limitava-se a sair cedo e chegar tarde.

Comecei a pensar em voltar ao trabalho. Liguei à antiga chefe do colégio onde dava aulas antes dos gémeos nascerem.

— Inês! Que saudades tuas! Claro que temos lugar para ti… Podes começar já no próximo mês?

Senti uma esperança tímida crescer dentro de mim. Talvez recuperar um pouco da minha independência ajudasse.

Quando contei ao Miguel, ele ficou surpreendido:

— E quem vai ficar com os miúdos?

— Podemos procurar uma creche… ou então a tua mãe pode ajudar durante umas horas.

Ele encolheu os ombros:

— Faz como quiseres.

A indiferença dele magoou-me mais do que qualquer discussão. Mas decidi avançar mesmo assim.

As primeiras semanas no trabalho foram difíceis: sentia culpa por deixar os gémeos na creche e medo de não estar à altura das exigências do colégio. Mas aos poucos fui recuperando alguma confiança em mim mesma. Os miúdos adaptaram-se melhor do que eu esperava e até começaram a dormir melhor à noite.

O Miguel continuava distante. Uma noite cheguei a casa mais cedo e encontrei-o ao telefone na varanda:

— Não sei quanto tempo mais aguento isto… — ouvi-o dizer antes de desligar rapidamente quando me viu.

O coração caiu-me aos pés. Será que ele tinha outra pessoa? Ou simplesmente já não gostava de mim?

Tentei falar com ele nessa noite:

— Miguel… precisamos mesmo de conversar. Isto não pode continuar assim.

Ele olhou para mim com olhos cansados:

— Eu também estou farto disto tudo, Inês… Sinto que perdi quem era antes dos miúdos nascerem. Sinto-me preso entre ti e a minha mãe… E tu também já não és a mesma.

As palavras dele doeram mais do que qualquer traição física poderia doer. Porque eram verdadeiras. Eu também já não era a mesma mulher alegre e confiante de antes.

Passaram-se semanas sem grandes mudanças. Fomos vivendo em piloto automático: trabalho-casa-creche-jantares silenciosos-camas separadas.

Até ao dia em que o Tomás ficou doente com febre alta e tive de ir buscá-lo à creche a meio da tarde. Liguei ao Miguel desesperada:

— Preciso que venhas comigo ao hospital!

Ele apareceu meia hora depois, nervoso mas presente. Pela primeira vez em meses senti que éramos uma equipa outra vez enquanto esperávamos notícias do médico.

O Tomás recuperou rapidamente mas aquele susto serviu para nos obrigar a olhar um para o outro com outros olhos.

Nessa noite sentámo-nos juntos na sala depois dos miúdos adormecerem:

— Não sei se ainda conseguimos salvar isto — disse-lhe baixinho — mas quero tentar… pelos nossos filhos e por nós.

Ele pegou-me na mão pela primeira vez em muito tempo:

— Eu também quero tentar… Mas precisamos de pôr limites à minha mãe e aprender a ouvir-nos outra vez.

Não foi fácil nem rápido. Dona Graça ficou ofendida quando começámos a impor regras sobre as visitas e decisões familiares. Houve lágrimas e discussões acesas. Mas aos poucos fomos encontrando um novo equilíbrio: menos dependentes dela, mais próximos um do outro.

Hoje olho para trás e vejo quanto cresci neste processo doloroso. Ainda temos dias maus; ainda discutimos; ainda sinto saudades da leveza dos primeiros tempos. Mas aprendi que o amor é feito de escolhas diárias — e que às vezes é preciso perder-se para se reencontrar.

Será que todas as famílias passam por isto? Quantas mulheres se sentem invisíveis dentro das suas próprias casas? Gostava tanto de saber se há esperança para todos nós…