Entre Paredes e Silêncios: O Dia em que Saímos da Casa da Minha Sogra
— Vais mesmo fazer isto comigo, Sofia? Vais mesmo virar-me as costas depois de tudo o que fiz por ti?
As palavras da Dona Amélia ecoavam pelo corredor estreito do apartamento, misturando-se com o cheiro a café queimado e a roupa acabada de passar. Eu estava de costas para ela, as mãos a tremer enquanto tentava fechar a mala azul que já tinha visto melhores dias. O Rui, meu marido, estava parado à porta do quarto, os olhos baixos, incapaz de enfrentar a mãe ou de me encarar.
— Não é virar-lhe as costas, Dona Amélia. Só precisamos de espaço… — tentei explicar, mas a minha voz saiu fraca, quase um sussurro.
Ela bufou, cruzando os braços com força. — Espaço? O que tu precisas é de juízo. Achas que a vida lá fora é fácil? Achas que o Rui vai conseguir sustentar-te? — O olhar dela pousou no filho, carregado de desilusão. — E tu, Rui? Vais deixar que ela te arraste para essa maluquice?
O silêncio dele doeu mais do que qualquer palavra. Eu sabia que ele estava dividido. A mãe sempre fora o pilar da família desde que o pai morrera, e eu… eu era apenas a mulher que viera abalar aquela estrutura rígida.
A verdade é que nunca fui bem-vinda ali. Desde o início, Dona Amélia fazia questão de me lembrar que aquela era a casa dela, as regras dela. Pequenas coisas: o arroz tinha de ser feito como ela gostava, as toalhas dobradas à maneira dela, até o volume da televisão era motivo para discussão. No início tentei adaptar-me, engolir em seco, sorrir e agradecer. Mas com o tempo, cada gesto meu parecia ser um erro.
Lembro-me de uma noite em particular. Tinha feito um jantar especial para o Rui — bacalhau à Brás, o prato preferido dele — e convidei Dona Amélia para se juntar a nós. Ela sentou-se à mesa, provou uma garfada e disse: “Está salgado demais. A tua mãe não te ensinou a cozinhar?” O Rui ficou calado. Eu sorri amarelo e continuei a comer, mas por dentro sentia-me cada vez mais pequena.
As discussões começaram a ser diárias. Por causa do banho demorado, da roupa estendida no sítio errado, do cheiro do meu perfume no corredor. O Rui tentava apaziguar: “Deixa lá, Sofia. Ela é assim mesmo.” Mas eu sentia-me a sufocar.
Foi numa dessas noites, depois de mais uma discussão sobre as contas da luz — “Se continuas assim, ainda me levas à falência!” — que me fechei na casa de banho e chorei baixinho para não acordar ninguém. Olhei-me ao espelho e perguntei: “É isto que quero para mim? Para nós?”
No dia seguinte, quando o Rui chegou do trabalho, sentei-me com ele na varanda minúscula e disse:
— Não aguento mais. Ou saímos daqui ou vou perder-me de vez.
Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas e vi ali o mesmo cansaço. O mesmo medo.
— Tens razão. Não podemos continuar assim.
Começámos a procurar casa. Lisboa não é fácil para quem tem pouco dinheiro. Visitámos quartos em apartamentos partilhados com estudantes barulhentos, T1s húmidos em Chelas, estúdios minúsculos em Marvila onde mal cabia uma cama. Cada visita era uma desilusão. O dinheiro não chegava, os senhorios olhavam-nos de lado quando dizíamos que éramos casados mas sem filhos — “E se engravidam? Não quero problemas!”
Durante semanas escondemos tudo da Dona Amélia. Mas ela percebeu. Começou a fazer perguntas: “Porque andam tão calados? Porque chegam sempre tarde?” Até que um dia encontrou um contrato de arrendamento na mochila do Rui.
— Então é isto? Vão abandonar-me? — gritou ela na sala, lágrimas nos olhos.
O Rui tentou abraçá-la mas ela afastou-o com um gesto brusco.
— Não é abandono, mãe. Só precisamos de viver a nossa vida.
Ela virou-se para mim: — Tu é que lhe meteste estas ideias na cabeça! Sempre foste egoísta!
Senti-me culpada e aliviada ao mesmo tempo. Culpada por magoar aquela mulher que só queria proteger o filho; aliviada porque finalmente tudo estava às claras.
No dia da mudança chovia torrencialmente. Carregámos as malas pelas escadas abaixo enquanto Dona Amélia nos seguia com o olhar duro. No último andar, antes de sair, voltei-me para ela:
— Obrigada por tudo.
Ela não respondeu.
O nosso novo apartamento era pequeno e frio. As paredes tinham manchas de humidade e as janelas deixavam entrar o vento do Tejo. Mas era nosso. Pela primeira vez em anos dormi uma noite inteira sem acordar sobressaltada com passos no corredor ou portas a bater.
No início foi difícil. O dinheiro mal chegava para as contas e muitas vezes jantávamos sopa e pão duro. O Rui trabalhava horas extra num café enquanto eu fazia limpezas em casas alheias. Mas havia silêncio. Havia espaço para respirar.
Com o tempo começámos a redescobrir-nos um ao outro. Ríamos das pequenas desgraças — como quando o cano rebentou e inundou a cozinha — e celebrávamos cada conquista: uma promoção do Rui, um contrato novo para mim.
A Dona Amélia ligava de vez em quando. Ao princípio só para saber se estávamos vivos; depois começou a perguntar se precisávamos de alguma coisa. Um dia apareceu à porta com um tacho de cozido à portuguesa e lágrimas nos olhos:
— Desculpem… Eu só queria o melhor para vocês.
Abraçámo-nos os três ali mesmo no corredor apertado do nosso T1.
Hoje olho para trás e percebo que foi preciso coragem para sair daquele lugar onde nunca fui verdadeiramente aceite. Foi preciso perder o chão para encontrar asas.
Às vezes pergunto-me: quantos casais vivem presos ao medo de magoar os outros e esquecem-se de si próprios? Será que vale a pena sacrificar a felicidade pelo conforto do conhecido? E vocês… já tiveram de escolher entre família e liberdade?