Entre Dois Lares: Quando a Minha Sogra Quis Roubar a Minha Vida
— Marta, não percebes? A minha mãe não tem para onde ir! — gritou o Rui, com os olhos vermelhos de cansaço e frustração.
Eu estava sentada à mesa da cozinha, as mãos frias a apertar a chávena de chá já morno. Lá fora, a chuva batia nos vidros, mas cá dentro era o silêncio que me gelava. O Rui olhava para mim como se eu fosse o obstáculo entre ele e o dever de filho. E eu sentia-me cada vez mais pequena.
Tudo começou há seis meses, quando o pai do Rui morreu subitamente. Dona Lurdes ficou sozinha na casa grande de Vila Franca, e logo começou a insinuar que não conseguia viver ali sem companhia. No início, tentei ser compreensiva. “Claro que pode vir passar uns dias connosco,” disse-lhe, sorrindo, enquanto lhe servia um café. Mas os dias tornaram-se semanas, e as semanas meses. E a Dona Lurdes foi-se instalando na nossa vida como quem planta raízes.
— Marta, querida, não te importas que eu fique mais uns tempos? — perguntava ela, com aquela voz doce que só usava quando queria alguma coisa.
Eu sorria, mas por dentro sentia-me invadida. A minha casa já não era minha. As almofadas do sofá tinham o cheiro do perfume dela, as panelas estavam sempre cheias de cozido à portuguesa (que eu detestava), e até o Rui parecia diferente — mais distante, mais tenso.
Uma noite, ouvi-os a falar baixinho na sala. “A Marta não vai perceber… Ela gosta tanto desta casa,” dizia o Rui. “Mas filho, esta casa é tão pequena! E eu sinto-me tão sozinha… Se vendessem isto e comprássemos uma casa maior para todos… Era melhor para todos nós.” O meu coração apertou-se. Eu sabia que ela queria mais do que companhia: queria controlar-nos.
No dia seguinte, Rui veio ter comigo com aquele ar de quem já decidiu tudo.
— Marta, a minha mãe tem razão. Devíamos vender a casa e comprar uma maior. Assim ela podia ter o quarto dela, espaço para as coisas dela… — disse ele, evitando olhar-me nos olhos.
— E eu? — perguntei, sentindo as lágrimas a quererem saltar. — E o nosso espaço? A nossa vida?
Ele suspirou. — Não podes ser egoísta agora.
A palavra ficou a ecoar na minha cabeça: egoísta. Eu? Depois de anos a pôr tudo à frente dos meus desejos? Depois de aceitar jantares de família todos os domingos, férias em Tróia com os sogros e até críticas à forma como educo os meus filhos?
Os dias seguintes foram um inferno. Dona Lurdes fazia questão de me lembrar que estava “só de passagem”, mas já tinha mudado metade das coisas da casa. O Rui andava calado, evitava-me. Os miúdos perguntavam porque é que a avó dormia sempre cá.
Uma noite, depois de todos se deitarem, sentei-me no chão da cozinha e chorei baixinho. Senti-me sozinha como nunca antes. Lembrei-me da minha mãe, que sempre me dizia: “Marta, nunca deixes ninguém passar por cima de ti.” Mas como é que se faz isso quando toda a gente espera que tu cedas?
No domingo seguinte, durante o almoço, Dona Lurdes lançou a bomba:
— Já vi umas casas em Sintra tão bonitas! Com jardim e tudo… O Rui podia trabalhar em Lisboa na mesma, e tu podias finalmente ter espaço para os teus livros… Não era maravilhoso?
Olhei para o Rui à espera de um sinal de apoio. Ele só encolheu os ombros.
— Eu não quero mudar de casa — disse finalmente, com a voz trémula. — Esta é a nossa casa. Foi aqui que começámos tudo.
Dona Lurdes fez aquele ar magoado que me dava vontade de gritar.
— Eu só quero o melhor para vocês… — murmurou ela.
O resto do almoço foi um silêncio pesado. Quando os miúdos saíram para brincar, virei-me para o Rui:
— Isto não pode continuar assim. Ou ela vai embora ou eu vou.
Ele olhou para mim como se eu fosse uma estranha.
— Estás mesmo disposta a destruir a família por causa disto?
Levantei-me da mesa sem responder. Passei a tarde no quarto dos miúdos, a arrumar brinquedos só para não ter de olhar para ninguém.
Nessa noite, escrevi uma carta à minha mãe. “Sinto-me perdida,” escrevi. “Não sei se sou má pessoa por não querer viver com a minha sogra. Sinto raiva do Rui por não me defender. Sinto raiva de mim por não conseguir dizer basta.”
A resposta chegou dois dias depois: “Filha, amar também é saber dizer não. Se não defenderes o teu espaço agora, nunca mais vais recuperá-lo.”
Na sexta-feira seguinte, esperei que o Rui chegasse do trabalho e sentei-o à mesa.
— Ouve bem: eu amo-te, mas não vou abdicar da minha vida por causa da tua mãe. Se ela ficar cá mais uma semana, vou embora com os miúdos.
Ele ficou branco como a cal.
— Não podes fazer isso…
— Posso e vou — respondi firme pela primeira vez em meses.
Nessa noite dormimos costas voltadas. No dia seguinte, Dona Lurdes fez as malas e voltou para Vila Franca.
O Rui ficou semanas sem me dirigir a palavra fora do essencial. Os miúdos perguntavam porque é que a avó já não vinha cá dormir. Eu sentia-me culpada e aliviada ao mesmo tempo.
Passaram-se meses até voltarmos a falar abertamente sobre tudo isto. O casamento ficou marcado por uma cicatriz invisível — uma ferida que ainda hoje dói quando alguém fala em família ou em obrigações.
Às vezes pergunto-me se fiz bem em impor limites tão duros. Outras vezes penso que foi isso que me salvou.
E vocês? Já sentiram que tinham de escolher entre vocês próprios e as expectativas da família? Até onde iriam para proteger o vosso espaço?