“É só o jantar, qual é o problema?” – Como uma frase do meu marido virou a minha vida do avesso

“É só o jantar, qual é o problema?”

As palavras do Rui ecoaram na minha cabeça como um trovão abafado, mesmo depois de ele já ter saído da cozinha. Eu estava de costas para ele, a mexer o arroz, mas as mãos tremiam-me tanto que quase deixei cair a colher de pau. Era só o jantar, dizia ele. Só. Como se tudo aquilo que eu fazia todos os dias – levantar-me antes do sol, preparar os pequenos-almoços, arranjar as lancheiras das crianças, correr para o trabalho, voltar a correr para casa, inventar um jantar com o pouco que havia no frigorífico – fosse uma coisa banal, sem importância.

A porta da cozinha bateu devagar. Ouvi os passos dele a afastarem-se pelo corredor e depois o som da televisão a ser ligada na sala. O Tiago e a Matilde brincavam no chão da sala, riam-se alto, alheios à tensão que pairava no ar. Senti uma lágrima quente escorrer-me pela face. Limpei-a rapidamente com as costas da mão. Não queria que ninguém me visse assim – fraca, magoada.

“Só o jantar”, repeti baixinho para mim mesma. Como se fosse só isso. Como se não fosse tudo.

Naquela noite, sentei-me à mesa com eles, mas mal toquei na comida. O Rui nem reparou. Falava do jogo do Benfica com o Tiago e ria-se das piadas da Matilde. Eu estava ali, mas era como se fosse invisível.

Depois de deitar as crianças, fui para a varanda fumar um cigarro – coisa que já não fazia há anos. O vento frio de março cortava-me a pele, mas eu precisava daquele ar gelado para pensar. Lembrei-me de quando conheci o Rui, há quase quinze anos atrás, numa festa de amigos em Coimbra. Ele era divertido, atencioso, fazia-me sentir especial. Onde é que esse homem tinha ido parar?

No dia seguinte, acordei antes do despertador. Fiquei a olhar para o teto durante minutos, a ouvir a respiração pesada do Rui ao meu lado. Senti raiva e tristeza ao mesmo tempo. Levantei-me devagar e fui preparar o pequeno-almoço como sempre. Mas algo dentro de mim tinha mudado.

Quando ele entrou na cozinha, perguntei-lhe:
— Rui, achas mesmo que é só o jantar?
Ele olhou para mim com ar aborrecido.
— Oh Ana, não comeces… Estás sempre cansada, sempre stressada. É só um jantar! Não percebo porque fazes tanto drama.
Senti um nó na garganta.
— Não é só o jantar, Rui. É tudo o resto também. Achas que isto se faz sozinho?
Ele encolheu os ombros e saiu da cozinha sem responder.

Nesse dia fui trabalhar como um autómato. No escritório, a minha colega Sofia percebeu logo que algo não estava bem.
— Estás com um ar péssimo, Ana. O que se passa?
Desabafei com ela durante o almoço. Sofia ouviu-me em silêncio e depois disse:
— Sabes que mais? Faz greve. Deixa de fazer tudo por uns dias e vê se ele repara.
A ideia pareceu-me absurda ao início. Mas quanto mais pensava nela, mais sentido fazia.

Naquela semana decidi experimentar. Não preparei os pequenos-almoços nem as lancheiras das crianças. Não lavei a roupa nem arrumei a casa. Quando cheguei do trabalho, sentei-me no sofá com um livro e deixei que o caos se instalasse.

No primeiro dia, Rui não reparou em nada. No segundo, começou a resmungar:
— Ana, não há pão? O Tiago foi para a escola sem lanche!
Encolhi os ombros.
— Não tive tempo.
Ele olhou para mim como se eu tivesse enlouquecido.
No terceiro dia, a casa parecia um campo de batalha: brinquedos espalhados por todo o lado, roupa suja acumulada no cesto, loiça por lavar na pia.
As crianças começaram a reclamar:
— Mãe, não há sopa? — perguntou a Matilde com os olhos tristes.
Senti uma pontada no peito, mas mantive-me firme.
— Hoje é o pai que faz o jantar.
O Rui bufou alto:
— Isto assim não pode ser! O que é que te deu?
Olhei-o nos olhos pela primeira vez em dias.
— Cansei-me de ser invisível nesta casa.

Naquela noite tivemos a nossa primeira discussão séria em anos. Gritámos um com o outro até às lágrimas. Ele acusou-me de ser egoísta; eu acusei-o de não me valorizar.
— Achas que isto tudo acontece por magia? — gritei-lhe.
— Eu trabalho tanto quanto tu! — respondeu ele.
— Mas quando chegas a casa sentas-te no sofá! Eu continuo a trabalhar!
Ele ficou calado por um momento e depois saiu de casa batendo com a porta.

Fiquei sozinha na cozinha escura, rodeada de pratos sujos e brinquedos espalhados pelo chão. Senti-me miserável e ao mesmo tempo estranhamente aliviada por finalmente ter dito tudo aquilo em voz alta.

O Rui voltou tarde nessa noite. Não trocámos palavra antes de nos deitarmos. Dormimos costas voltadas.

Nos dias seguintes, as coisas pioraram antes de melhorarem. As crianças estavam confusas e tristes; eu sentia-me culpada por as envolver no nosso conflito, mas sabia que tinha de aguentar firme se queria mudar alguma coisa.

Uma noite, depois de pôr os miúdos na cama, Rui entrou na cozinha onde eu estava sentada sozinha à mesa.
— Ana… — começou ele com voz baixa — Eu não fazia ideia…
Levantei os olhos para ele.
— Não fazias ideia porque nunca quiseste ver.
Ele sentou-se à minha frente e passou as mãos pelo cabelo.
— Tens razão. Fui egoísta. Achei que era normal… Que era assim em todas as casas…
Senti as lágrimas a quererem voltar.
— Não tem de ser assim. Eu também trabalho fora… Também estou cansada…
Ele pegou na minha mão pela primeira vez em semanas.
— Desculpa… Quero ajudar mais. Mas preciso que me digas como…
Respirei fundo e deixei cair finalmente todas as defesas.
— Preciso que vejas tudo o que faço… Que me ajudes sem eu ter de pedir… Que sejas meu parceiro nisto…
Ele assentiu devagar.
— Prometo tentar…

A partir desse dia começámos a dividir as tarefas: ele passou a fazer o jantar duas vezes por semana; levava as crianças à escola quando podia; ajudava nas limpezas ao fim-de-semana. Não foi perfeito – houve discussões e recaídas – mas aos poucos fomos encontrando um novo equilíbrio.

Mais importante ainda: comecei a olhar para mim própria de outra forma. Percebi que tinha deixado de lado os meus sonhos e vontades durante anos para manter tudo a funcionar para os outros. Inscrevi-me num curso de cerâmica às quartas-feiras à noite; voltei a sair com amigas ao sábado à tarde; comecei a cuidar mais de mim sem sentir culpa.

A nossa relação mudou – ficou mais honesta, mais real. Houve dias em que pensei em desistir; outros em que me apaixonei outra vez pelo Rui ao vê-lo brincar com os filhos ou surpreender-me com um jantar especial feito por ele.

Hoje olho para trás e percebo que aquela frase – “É só o jantar” – foi o início do fim da mulher invisível que eu era nesta casa.

E vocês? Quantas vezes já se sentiram invisíveis dentro da vossa própria família? Será preciso deixar tudo desabar para sermos finalmente vistos?