Depois de Vinte Anos: Quando o Mundo Cai e a Vida Surpreende
— Vais mesmo deixar-me assim? — perguntei, a voz embargada, sem conseguir acreditar no que ouvia.
Janete, minha irmã mais velha, estava sentada à minha frente, olhos fixos no chão da sala. Mas não era dela que eu esperava uma resposta. Era do João, meu marido há vinte anos, que arrumava apressadamente algumas roupas numa mala azul, a mesma que usámos tantas vezes para ir de férias ao Algarve com o nosso filho, Miguel.
— Não é justo, João! — gritei, sentindo a garganta arder. — Depois de tudo? Depois de vinte anos?
Ele não respondeu. Limitou-se a fechar o fecho da mala com um estalido seco, como se quisesse pôr um ponto final na nossa história. Olhou-me de relance, os olhos cheios de culpa e medo.
— Desculpa, Ana. Eu… Eu apaixonei-me por outra pessoa. Não consigo continuar a mentir-te.
As palavras ecoaram na minha cabeça como um trovão. Senti-me a afundar num poço sem fundo. O chão fugiu-me dos pés. Não chorei. Não gritei mais. Fiquei ali, sentada no sofá castanho que comprámos juntos na Conforama, olhando para a parede branca onde ainda estavam as fotos do nosso casamento e do batizado do Miguel.
Janete aproximou-se e pousou a mão no meu ombro. — Ana…
Afastei-a com um gesto brusco. — Não digas nada. Por favor.
O silêncio instalou-se na casa. O relógio da cozinha marcava 19h12. O cheiro do jantar queimado invadia o corredor. João saiu sem olhar para trás. Ouvi a porta bater e só então percebi que estava sozinha.
Miguel chegou pouco depois, mochila às costas e auscultadores nos ouvidos. Tinha acabado de fazer 17 anos. Quando lhe contei, ficou pálido. — O pai fez mesmo isso? — perguntou, incrédulo.
Assenti. Ele não chorou, mas vi-lhe os olhos brilharem de raiva e tristeza.
Os dias seguintes foram um nevoeiro denso. Faltava ao trabalho, não tinha forças para sair da cama. A casa parecia maior, fria, cheia de ecos do passado: as risadas à mesa, as discussões por causa das contas, os abraços na varanda ao fim da tarde.
O telefone tocava sem parar: a minha mãe queria saber se eu precisava de alguma coisa; as colegas do escritório perguntavam se eu ia voltar; até o senhor António do café do bairro me mandou mensagem a perguntar se estava tudo bem.
Mas o mais surpreendente foi quem apareceu à minha porta numa tarde chuvosa: Sofia, a ex-namorada do João antes de mim. Não éramos amigas — aliás, sempre senti uma ponta de ciúme dela, mesmo depois de tantos anos.
— Posso entrar? — perguntou, encharcada da chuva.
Fiquei sem saber o que dizer. Acenei com a cabeça e ela entrou, tirando o casaco molhado.
— Soube do que aconteceu… Não podia ficar indiferente — disse ela, sentando-se à minha frente.
Olhei-a desconfiada. — Vieste gozar comigo?
Ela abanou a cabeça. — Não, Ana. Vim porque sei o que dói ser trocada por alguém mais nova. O João fez-me o mesmo há vinte anos… contigo.
As palavras dela bateram forte. Nunca tinha pensado nisso daquela forma. Sempre me vi como a vítima da história, nunca como alguém capaz de causar dor semelhante.
Sofia continuou:
— Achei que ia morrer naquela altura. Mas sobrevivi. E tu também vais sobreviver.
Ficámos ali horas a falar. Pela primeira vez em semanas senti-me compreendida. Sofia não tentou minimizar a minha dor nem me deu conselhos vazios. Limitou-se a ouvir e a partilhar as suas próprias feridas.
Nos dias seguintes comecei a sair mais de casa. Miguel precisava de mim — e eu precisava dele. Fomos juntos ao supermercado, cozinhámos juntos (mesmo que o arroz ficasse sempre empapado), vimos filmes antigos na RTP Memória.
A minha mãe veio passar uns dias connosco. Trouxe bolos caseiros e histórias dos tempos em que o meu pai também lhe partiu o coração — mas voltou sempre para casa ao fim do dia.
Uma noite, Miguel entrou no meu quarto sem bater à porta:
— Mãe… Achas que o pai vai voltar?
Olhei-o nos olhos e vi ali o mesmo medo que eu sentia todos os dias.
— Não sei, filho. Mas se voltar… não sei se quero que volte.
Ele assentiu em silêncio e abraçou-me com força.
No trabalho, as coisas não melhoravam. A chefe começou a pressionar-me por causa dos atrasos e das faltas. Uma colega insinuou que eu estava a aproveitar-me da situação para ter atenção.
— A Ana sempre foi dramática — ouvi-a dizer à hora do almoço.
Fingi que não ouvi, mas por dentro doeu ainda mais.
Uma noite recebi uma mensagem do João: “Posso passar aí para falar?”
O coração disparou-me no peito. Passei horas a ensaiar o que lhe ia dizer: queria gritar-lhe tudo o que me magoava, queria perguntar-lhe se ela era melhor do que eu, se alguma vez me amou de verdade.
Quando ele chegou, parecia mais velho, cansado.
— Ana… Desculpa por tudo isto. Sei que te magoei muito.
— Porquê? — perguntei-lhe finalmente. — O que é que ela tem que eu não tenho?
Ele encolheu os ombros:
— Não sei explicar… Senti-me vivo outra vez. Mas agora percebo que fui um cobarde.
Ficámos em silêncio durante minutos intermináveis.
— Preciso de tempo — disse-lhe por fim. — Para mim e para o Miguel.
Ele assentiu e saiu sem protestar.
Os meses passaram devagarinho. Fui reconstruindo-me aos poucos: comecei a fazer caminhadas ao fim da tarde com Sofia (que se tornou uma amiga improvável), inscrevi-me num curso de cerâmica na junta de freguesia, pintei as paredes da sala de amarelo torrado para afastar as más memórias.
Miguel começou a trazer amigos para casa outra vez; ouvi risos no corredor e senti esperança pela primeira vez em muito tempo.
A relação com Janete também mudou: ela pediu desculpa por não ter sabido apoiar-me melhor no início; eu perdoei-lhe porque percebi que cada um lida com a dor à sua maneira.
Hoje olho para trás e vejo aquela mulher sentada no sofá como alguém quase irreconhecível: frágil, perdida… mas também cheia de força escondida.
Às vezes pergunto-me: quantas vezes achamos que é o fim quando afinal é só o começo? E será possível perdoar verdadeiramente quem nos magoa tanto?