Chamavam-me de tia, mas só viam o meu apartamento: Uma história de traição dentro da família

— Tia, não achas que já está na altura de pensares no futuro? — A voz da Mariana ecoou pela sala, enquanto os olhos dela percorriam cada canto do meu pequeno apartamento em Lisboa, como se já lhe pertencesse.

Senti um aperto no peito. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com a tensão no ar. A minha irmã, Teresa, olhava para mim de lado, fingindo interesse na chávena, mas eu sabia que ela estava ali para o mesmo. Desde que fiquei viúva, há quase dez anos, a família começou a visitar-me mais vezes. No início, pensei que era preocupação. Só mais tarde percebi que era o apartamento, o meu único bem, que lhes despertava tanto zelo.

Mariana, a minha sobrinha, sempre foi a menina dos olhos da família. Inteligente, bonita, cheia de sonhos. Mas ultimamente, os sonhos dela pareciam passar todos por aqui, pelo meu T2 no centro da cidade. “Tia, tu não queres viver sozinha para sempre, pois não?” — insistiu ela, com aquele sorriso doce que usava para conseguir tudo o que queria.

Lembrei-me de quando ela era pequena, de como lhe segurava a mão para atravessar a rua, de como lhe fazia bolos de aniversário. Agora, sentia-me uma peça de xadrez num jogo que não compreendia totalmente. “Mariana, eu estou bem aqui. Gosto do meu espaço.”

Teresa pousou a chávena. “Mas, Lúcia, a Mariana está a começar a vida dela. Tu sabes como está difícil arranjar casa em Lisboa. E tu, sozinha… Não pensaste em ir para um lar?”

A palavra “lar” soou como uma sentença. Vi o olhar cúmplice entre mãe e filha. O meu coração acelerou. “Não sou um móvel velho para ser arrumada num canto qualquer!” — pensei, mas não disse nada. Limitei-me a sorrir, tentando esconder a mágoa.

Os dias seguintes foram um desfile de telefonemas, visitas inesperadas, conversas cheias de segundas intenções. O meu irmão, António, até apareceu com um bolo, coisa que nunca fazia. “Sabes, Lúcia, devias pensar em fazer testamento. Não queremos confusões depois…”

Senti-me cercada. O apartamento, que sempre foi o meu refúgio, tornou-se uma prisão. Comecei a duvidar de tudo: do carinho deles, das memórias partilhadas, até do amor que julgava incondicional. Passei noites em claro, a olhar para o teto, a perguntar-me se alguma vez fui realmente amada ou se sempre fui apenas a tia solteirona com um bom imóvel.

Uma tarde, Mariana apareceu sozinha. Trazia flores e um sorriso nervoso. “Tia, preciso mesmo de falar contigo. Sei que a mãe e o tio têm pressionado, mas eu… eu só queria pedir-te uma coisa. Se algum dia pensares em deixar o apartamento, pensa em mim primeiro. Eu prometo cuidar de ti, de verdade.”

As lágrimas ameaçaram cair. “Mariana, tu achas que eu sou um prémio? Que a minha vida é um jogo de quem chega primeiro?”

Ela baixou os olhos. “Não é isso, tia. Só… só quero garantir o meu futuro.”

“E o meu? Quem garante o meu futuro?” — perguntei, a voz a tremer. “Sabes o que é acordar todos os dias e sentir que ninguém te visita por amor, mas por interesse? Sabes o que é sentir que a tua família só te vê como uma chave para uma vida melhor?”

Mariana chorou. Pela primeira vez, vi nela a menina assustada que um dia fui. Abracei-a, mas o abraço foi frio, distante. Algo se tinha partido entre nós.

Nos dias seguintes, afastei-me. Deixei de atender telefonemas, fechei-me em casa. Os vizinhos estranharam. A dona Rosa, do terceiro andar, bateu-me à porta com sopa quente. “Lúcia, não te deixes ir abaixo. A família às vezes esquece-se do que importa.”

Comecei a pensar em vender o apartamento e ir para o interior, para longe de tudo e todos. Mas depois lembrei-me das tardes de sol na varanda, dos risos das crianças no pátio, das conversas com a dona Rosa. Este era o meu lar. Não ia deixar que me tirassem isso.

Numa manhã de domingo, reuni a família. Sentei-os à mesa, como tantas vezes fizera antes. “Quero dizer-vos uma coisa. Este apartamento é meu. Foi aqui que vivi os melhores e os piores momentos da minha vida. Não vou sair daqui. E não vou deixar que me pressionem mais. Se me amam, respeitem a minha decisão. Se não conseguem, então talvez seja melhor cada um seguir o seu caminho.”

O silêncio foi pesado. Teresa chorou. António levantou-se e saiu sem dizer palavra. Mariana ficou sentada, a olhar para as mãos.

Desde esse dia, as visitas rarearam. Senti falta deles, mas também senti alívio. Aos poucos, fui reconstruindo a minha vida. Fiz novas amizades, inscrevi-me num grupo de leitura, comecei a pintar. Descobri que ainda havia muito para viver, mesmo sozinha.

Às vezes, olho para as fotografias antigas e pergunto-me onde errei. Será que fui demasiado generosa? Ou será que a solidão nos torna cegos ao verdadeiro caráter dos que nos rodeiam?

Hoje, sento-me na varanda ao fim da tarde e penso: quantas pessoas vivem rodeadas de família, mas sentem-se tão sós como eu me senti? Será que o amor familiar é mesmo incondicional, ou será apenas uma ilusão confortável? E vocês, já sentiram que o vosso valor para a família depende apenas do que têm para dar?