A Última Dança Que Nunca Aconteceu

— Mãe, preciso de te dizer uma coisa. — A voz da Inês tremia, mas os olhos estavam fixos nos meus, duros como nunca os tinha visto.

O silêncio na cozinha era tão denso que quase podia cortá-lo com a faca do pão. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o perfume das flores que tinha acabado de pôr na jarra, como se quisessem suavizar o que estava prestes a acontecer.

— O que foi, filha? — perguntei, tentando sorrir, mas sentindo já o coração apertado no peito.

Ela respirou fundo, desviou o olhar para as mãos e disse, num sussurro quase inaudível:

— Não quero que venhas ao meu casamento.

Por um momento, pensei que tinha ouvido mal. O mundo parou. O relógio da parede continuava a marcar o tempo, impiedoso, mas para mim tudo ficou suspenso. Senti uma dor aguda no peito, como se alguém me tivesse arrancado o ar dos pulmões.

— Como assim? — consegui balbuciar, com a voz embargada.

Inês não respondeu logo. Ficou ali sentada, a olhar para as mãos, enquanto eu tentava encontrar uma explicação lógica para aquelas palavras. Será que se envergonhava de mim? Do meu trabalho como empregada de limpeza? Das minhas roupas simples? Sempre fiz tudo por ela, dei-lhe tudo o que podia — e até o que não podia.

— Não é por vergonha — disse ela finalmente, como se me lesse os pensamentos. — Não é isso…

Levantei-me da cadeira, incapaz de ficar sentada. Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas forcei-me a manter a compostura. Afinal, era a mãe dela. Tinha de ser forte.

— Então explica-me, Inês. Por favor. — A minha voz saiu mais alta do que queria.

Ela olhou-me finalmente nos olhos. Vi ali uma tristeza profunda, misturada com raiva e mágoa. Uma expressão que nunca lhe tinha visto antes.

— Porque tu… tu e o pai… vocês destruíram tudo. — A voz dela tremeu. — Vocês nunca foram felizes juntos. E eu cresci no meio das vossas discussões, dos vossos silêncios. Não quero isso no meu casamento. Não quero olhar para trás e ver-vos ali, juntos mas tão distantes…

Senti-me a desmoronar por dentro. Lembrei-me de todas as noites em que tentei abafar os gritos com música alta na sala, de todas as vezes em que fingi não ouvir as portas a bater ou os insultos sussurrados quando pensávamos que ela já dormia.

— Inês… — tentei dizer qualquer coisa, mas ela interrompeu-me.

— Eu sei que fizeste tudo por mim, mãe. Mas eu preciso de paz naquele dia. Preciso de começar a minha vida sem esse peso. — As lágrimas corriam-lhe agora pelo rosto.

Sentei-me novamente, derrotada. Oiço ainda hoje o som da minha respiração ofegante naquele instante.

— E o teu pai vai? — perguntei, num fio de voz.

Ela abanou a cabeça.

— Não convidei nenhum dos dois. Vou entrar com o tio Luís. Ele sempre foi como um pai para mim…

O tio Luís. O irmão do meu ex-marido. Sempre presente nos aniversários, nas festas da escola, nas idas ao hospital quando ela partiu o braço aos oito anos. Sempre pronto a ouvir quando ela precisava de desabafar.

Senti uma pontada de ciúmes misturada com vergonha. Como é que deixei chegar as coisas a este ponto?

A partir desse dia, tudo mudou entre nós. Inês evitava-me sempre que podia. As conversas tornaram-se curtas e frias. Eu tentava aproximar-me, mas ela erguia muros invisíveis à minha volta.

Comecei a recordar os anos em que fui casada com o António. Os primeiros tempos foram felizes — ou pelo menos assim me parecia na altura. Tínhamos pouco dinheiro, mas muitos sonhos. Depois vieram as dificuldades: ele perdeu o emprego na fábrica de cortiça em Santa Maria da Feira; eu comecei a trabalhar em casas de família para pagar as contas; as discussões tornaram-se rotina.

Lembro-me de uma noite em particular: Inês tinha doze anos e chegou a casa mais cedo porque se sentia mal na escola. Encontrou-nos aos gritos na cozinha — eu acusava o António de gastar dinheiro no café; ele chamava-me ingrata e dizia que eu só sabia reclamar.

Nesse dia vi nos olhos dela um medo que nunca mais desapareceu completamente.

Com o tempo, António foi-se afastando cada vez mais até sair de casa sem olhar para trás. Fiquei sozinha com Inês e uma pilha de contas por pagar. Trabalhei horas extra, perdi aniversários e festas escolares porque precisava de pôr comida na mesa.

Sempre pensei que ela compreendia os meus sacrifícios. Que um dia me perdoaria por não ter conseguido dar-lhe uma família feliz.

Mas agora percebia: para ela, eu era parte do problema.

Os meses passaram e o casamento aproximava-se. Via as fotos dos preparativos no Facebook: Inês sorridente ao lado do noivo Miguel e do tio Luís; provas do vestido; ensaios do baile; despedida de solteira em Aveiro com as amigas.

Eu assistia a tudo à distância, com um nó na garganta e uma dor surda no peito.

Uma noite, não aguentei mais e liguei-lhe:

— Inês… desculpa ligar-te assim… só queria saber se precisas de alguma coisa para o casamento…

Ela respondeu seca:

— Está tudo tratado, mãe. Obrigada.

— Só queria dizer-te que te amo… e que estarei sempre aqui para ti…

Do outro lado ouvi apenas um suspiro cansado antes de desligar.

No dia do casamento acordei cedo, como se fosse trabalhar num sábado qualquer. Sentei-me à mesa da cozinha com uma chávena de chá frio entre as mãos e olhei para as fotografias antigas na parede: Inês bebé no meu colo; Inês aos cinco anos com um sorriso desdentado; Inês vestida de fada no Carnaval da escola primária.

Chorei baixinho para não acordar os vizinhos.

Ao fim da tarde recebi uma mensagem da minha irmã Teresa:

“A Inês está linda. O casamento foi bonito. O Luís emocionou-se ao levá-la ao altar.”

Fiquei ali sentada horas sem conseguir mexer-me. Senti-me vazia como nunca antes.

Nos dias seguintes tentei ocupar-me com o trabalho e com as tarefas da casa, mas nada preenchia aquele vazio.

Um mês depois recebi uma carta da Inês:

“Mãe,
Sei que te magoei muito ao não te convidar para o meu casamento. Mas precisava de começar esta nova fase sem os fantasmas do passado. Espero que um dia consigas perdoar-me e perceber que isto não foi contra ti — foi por mim.
Amo-te sempre,
Inês”

Li aquela carta dezenas de vezes até as palavras ficarem gastas pelo choro.

Hoje continuo sem saber se algum dia conseguirei perdoar-me por não ter conseguido dar à minha filha aquilo que ela mais precisava: paz e segurança.

Será possível reconstruir uma relação depois de tantas feridas? Ou há dores que nunca saram completamente? Gostava tanto de ouvir as vossas histórias…