A Noite em que Expulsei a Minha Sogra da Minha Casa

— Não é assim que se faz, Mariana! — A voz da minha sogra ecoou pela sala, cortando o riso e a música baixa da nossa pequena festa de inauguração. — Nesta casa, as coisas sempre foram feitas de outra maneira.

Senti o sangue gelar nas veias. Olhei para o Miguel, o meu marido, à procura de algum apoio, mas ele desviou o olhar, envergonhado. Os nossos amigos e familiares pararam de conversar, as taças suspensas no ar, todos à espera do próximo movimento. Eu sabia que aquela noite ia ser especial, mas nunca imaginei que seria assim.

Tudo começou meses antes, quando decidimos casar. Eu e o Miguel estávamos juntos há três anos e finalmente demos o passo. Os meus pais moram num T2 em Almada, sempre com dificuldades para chegar ao fim do mês. Já a mãe do Miguel, a Dona Lurdes, vivia sozinha num T3 em Benfica desde que o marido morreu. Parecia lógico irmos para lá — pelo menos até conseguirmos juntar dinheiro para um cantinho nosso.

— Este apartamento também é teu, Mariana — disse-me Dona Lurdes na primeira visita. — Aqui todos somos família.

Acreditei nela. Arrumámos as nossas coisas, pintámos o quarto de azul-claro e comprámos uma mesa nova para a sala. O Miguel parecia feliz. Eu tentava convencer-me de que era só uma fase.

Mas Dona Lurdes nunca saiu verdadeiramente de casa. Mesmo quando ia dormir à irmã em Setúbal, ligava-me a perguntar se já tinha regado as plantas ou se tinha fechado bem a janela da cozinha. Quando chegava do trabalho, encontrava sempre um recado: “Não te esqueças de passar a ferro as camisas do Miguel” ou “O jantar está no frigorífico, mas não mexas nos meus tupperwares”.

No início, tentei não ligar. Afinal, ela era só preocupada. Mas com o tempo, os recados viraram ordens e as ordens viraram críticas.

— Mariana, não sabes cozinhar bacalhau como deve ser? O Miguel sempre gostou do meu bacalhau à Brás.

— Mariana, essa saia não te favorece. Devias vestir-te como uma mulher casada.

O Miguel dizia para eu ter paciência. “Ela é assim com toda a gente”, justificava. Mas eu sentia-me cada vez mais sufocada.

Quando finalmente conseguimos juntar dinheiro para alugar um pequeno T2 em Odivelas, achei que tudo ia melhorar. Fizemos questão de convidar toda a família para a nossa “parapetiza”, como dizia a minha avó — uma festa simples para celebrar o nosso primeiro lar juntos.

A casa estava cheia: os meus pais trouxeram pastéis de nata, os primos do Miguel vieram com guitarras e até a Dona Lurdes apareceu com um tabuleiro de rissóis e um olhar crítico para as minhas cortinas amarelas.

No início da noite, tudo corria bem. As conversas fluíam, as crianças brincavam no corredor e eu sentia-me finalmente dona do meu espaço. Até ao momento em que Dona Lurdes se levantou no meio da sala e disse:

— Espero que saibas cuidar desta casa melhor do que cuidaste da minha. Porque se alguma coisa correr mal aqui, não penses que podes voltar para lá.

O silêncio foi imediato. Senti um nó na garganta. Olhei para o Miguel — ele estava pálido, sem saber onde se meter.

— Desculpe? — perguntei, tentando manter a calma.

— Ouviste bem — continuou ela, sem baixar o tom. — Sempre achei que não eras mulher para o meu filho. Agora vais ter de provar que mereces este teto.

As lágrimas ameaçaram cair, mas respirei fundo. Não ia chorar à frente dela. Levantei-me devagar e disse:

— Dona Lurdes, esta é a minha casa agora. E quem não respeita este espaço não é bem-vindo aqui.

Ela ficou vermelha de raiva.

— Estás a expulsar-me?

— Estou a pedir-lhe que vá embora antes que diga mais alguma coisa de que se arrependa.

O Miguel tentou intervir:

— Mãe… Mariana…

Mas eu já tinha tomado a decisão. A minha mãe levantou-se e veio ter comigo, apertando-me a mão com força. Os convidados começaram a murmurar entre si. Dona Lurdes pegou na mala e saiu sem olhar para trás.

A festa acabou ali mesmo. Os meus pais ajudaram-me a arrumar tudo em silêncio. O Miguel ficou sentado no sofá, sem dizer palavra.

Quando finalmente ficámos sozinhos, ele explodiu:

— Não tinhas o direito de fazer aquilo! É a minha mãe!

— E eu sou tua mulher! — gritei de volta. — Não vou permitir que ninguém me humilhe na minha própria casa!

Discutimos até às três da manhã. Ele dizia que eu devia ter ignorado, que era só orgulho ferido da mãe dele. Eu dizia que já não aguentava mais viver à sombra daquela mulher.

Nos dias seguintes, mal nos falámos. O Miguel dormiu no sofá duas noites seguidas. Recebi mensagens da família dele a dizer que eu era ingrata e malcriada. A minha mãe dizia-me para ter calma, mas eu sentia-me cada vez mais sozinha.

Uma semana depois, Dona Lurdes ligou ao Miguel a chorar. Disse-lhe que estava doente, que ninguém gostava dela, que tinha perdido o filho por minha culpa. Ele foi vê-la e voltou ainda mais zangado comigo.

— Ela só tem a mim! — gritou ele.

— E eu? — perguntei baixinho. — Eu também só te tenho a ti.

Ficámos assim durante meses: ele dividido entre mim e ela; eu dividida entre o amor próprio e o medo de perder o homem que escolhi para partilhar a vida.

Houve dias em que pensei em desistir de tudo: fazer as malas e voltar para Almada, pedir desculpa à Dona Lurdes só para ter paz outra vez. Mas depois lembrava-me daquela noite: do silêncio pesado na sala, dos olhos dos meus amigos fixos em mim à espera de uma reação.

Será que fiz bem? Será que devia ter engolido mais uma humilhação só para manter a paz? Ou será que finalmente aprendi a defender o meu espaço?

Às vezes olho para o Miguel enquanto ele dorme e pergunto-me: quantas mulheres em Portugal passam pelo mesmo? Quantas têm coragem de dizer basta? E vocês — teriam feito diferente?