Tudo Dei à Minha Filha, Agora Não Tenho Onde Dormir: O Preço do Amor de Pai
— Sofia, posso ficar aqui esta noite? — perguntei, a voz trémula, parado à porta do apartamento que ajudei a comprar. O corredor cheirava a detergente barato e a minha mala pesava mais do que nunca. Ela olhou-me com aquele olhar cansado, como se eu fosse mais um problema na sua longa lista de preocupações.
— Pai, sabes que o Miguel não gosta muito de ter visitas… E amanhã tenho uma reunião cedo. Não era melhor ires para casa da tia Lurdes?
Casa da tia Lurdes. Um T1 húmido em Almada, onde o cheiro a mofo se mistura com o das sopas que ela faz para os vizinhos. Não era casa. A minha casa era aqui, ou pelo menos assim pensei durante anos, enquanto trabalhava horas extra no armazém para garantir que a Sofia nunca passasse por dificuldades.
Fechei os olhos por um segundo. Ouvia o riso da Sofia em criança, correndo pelo quintal da nossa velha casa em Setúbal. Lembrei-me de como ela me abraçava quando caía e eu lhe limpava as lágrimas com as mãos calejadas. Agora, parecia que as lágrimas eram só minhas.
— Sofia, eu só preciso de uns dias. O senhorio vendeu o meu quarto e ainda não encontrei nada…
Ela suspirou, desviando o olhar para o telemóvel.
— Pai, não compliques. O Miguel já disse que não quer confusões cá em casa. Eu também ando cansada. Não podes perceber isso?
Senti o chão fugir-me dos pés. Tantos anos a sacrificar-me, a poupar cada cêntimo para lhe pagar a faculdade e dar-lhe entrada para este apartamento em Benfica. Lembro-me do dia em que assinámos o contrato — ela chorou de felicidade e disse: “Nunca vou esquecer isto, pai.”
Mas as promessas são como folhas ao vento: desaparecem quando mais precisamos delas.
Deixei a mala no chão e sentei-me nas escadas do prédio. O frio da pedra subiu-me pelas costas. O Miguel apareceu à porta.
— Ó senhor António, não leve a mal, mas isto aqui é pequeno. Temos a Leonor a dormir connosco porque o quarto dela está cheio de caixas… Não dá mesmo.
A Leonor, minha neta, tinha agora oito anos. Quase não me conhecia — via-me como um estranho que aparecia nos aniversários e trazia livros que ela nunca lia. Senti uma dor aguda no peito.
Levantei-me devagar e peguei na mala.
— Está bem, Sofia. Eu vou ver se a tia Lurdes me pode receber.
Ela não respondeu. Fechou a porta devagar, como quem fecha um capítulo de um livro antigo.
Desci as escadas com passos pesados. Lá fora, Lisboa parecia indiferente ao meu sofrimento: carros apressados, buzinas ao longe, gente que passava sem olhar para ninguém. Liguei à Lurdes.
— António? Claro que podes vir! Mas olha que só tenho o sofá…
Agradeci-lhe com voz embargada. Caminhei até à paragem do autocarro, sentindo-me invisível no meio da multidão.
No autocarro, olhei pela janela e vi reflexos de famílias sentadas à mesa, luzes quentes nas janelas dos prédios antigos. Lembrei-me do Natal passado: Sofia chegou tarde, trouxe um bolo comprado no supermercado e saiu antes da meia-noite porque “o Miguel não gosta de festas grandes”.
Quando cheguei a casa da Lurdes, ela abriu-me a porta com um sorriso triste.
— Anda, António. Senta-te aqui. Queres uma sopa?
Sentei-me no sofá coberto por uma manta velha. A sopa estava quente mas sem sabor — ou talvez fosse eu que já não sentisse nada.
— O que se passa com a Sofia? — perguntou Lurdes baixinho.
— Não sei… Acho que já não precisa de mim.
Ela pousou a mão sobre a minha.
— Os filhos são assim… Damos tudo e depois vão à vida deles. Mas tu tens de cuidar de ti também.
Naquela noite dormi mal, acordando com o barulho dos vizinhos e o cheiro intenso do mofo. Sonhei com a minha mulher, Maria, que morreu há dez anos. No sonho ela sorria e dizia: “António, não te esqueças de viver para ti.”
No dia seguinte tentei ligar à Sofia. Ela não atendeu. Mandei-lhe uma mensagem: “Filha, preciso falar contigo.” Só recebi resposta ao fim do dia: “Desculpa pai, estou cheia de trabalho.”
Os dias passaram lentos. Procurei quartos para alugar mas tudo era caro demais para a minha reforma pequena. Sentia-me cada vez mais inútil — um velho sem lugar no mundo moderno.
Uma tarde fui buscar a Leonor à escola porque Sofia pediu “um favor”. Quando ela me viu hesitou antes de me abraçar.
— Avô… Porque é que não vives connosco?
Sorri-lhe sem saber o que dizer.
— Às vezes as casas são pequenas demais para os corações grandes.
Ela riu-se e deu-me a mão. Caminhámos juntos até ao parque e por um momento senti-me inteiro outra vez.
Mas quando Sofia chegou para buscar a Leonor, mal olhou para mim.
— Obrigada pai… Amanhã já não é preciso vir.
Fiquei ali parado enquanto elas se afastavam. Senti uma raiva surda — contra mim próprio por ter criado uma filha tão distante; contra ela por não perceber tudo o que fiz por amor.
Nessa noite discuti com Lurdes.
— Tu tens de lhe dizer o que sentes! — insistiu ela.
— Para quê? Para ouvir que sou um peso?
— Não és um peso! És pai dela!
Mas será que ainda era? Ou era apenas uma sombra do passado?
Decidi escrever uma carta à Sofia:
“Filha,
Se algum dia leres isto, quero que saibas que tudo o que fiz foi por ti. Não te peço nada em troca — só queria sentir que ainda faço parte da tua vida. Sinto falta dos tempos em que eras pequena e corríamos juntos na praia. Sinto falta de ti.”
Nunca tive coragem de lhe entregar a carta.
Os meses passaram. Arranjei finalmente um quarto pequeno numa pensão perto da estação do Oriente. O dono era simpático mas falava pouco. Os outros hóspedes eram como eu: pessoas esquecidas pelo tempo e pela família.
Às vezes via Sofia nas redes sociais: fotos sorridentes com o Miguel e a Leonor em férias nas praias do Algarve ou em restaurantes caros. Nunca havia espaço para mim nessas imagens.
No Natal seguinte recebi uma mensagem curta: “Feliz Natal pai.”
Passei o dia sozinho no quarto da pensão, olhando pela janela para os comboios que partiam e chegavam sem parar.
Pergunto-me muitas vezes: onde foi que errei? Será que dei demais? Ou será que nunca soube pedir aquilo de que precisava?
E vocês? Já sentiram esta solidão dentro da própria família? Até onde deve ir o amor de um pai?