“Só por uns dias”: Como me tornei a avó de tempo inteiro sem perceber

— Mãe, é só por uns dias, prometo. A Mariana começa a trabalhar já na segunda-feira e não temos mesmo ninguém… — O meu filho, Miguel, olhava-me com aqueles olhos de menino aflito, como se ainda tivesse dez anos e não quarenta e dois. — A escola é aqui ao lado, tu estás sempre em casa… Por favor, mãe.

Lembro-me de olhar para ele, para a Mariana, que se mantinha calada, com um sorriso tenso e as mãos apertadas no colo. O Tomás e a Leonor brincavam no tapete da sala, alheios à conversa que lhes mudaria a rotina — e a minha também. Disse que sim. Disse que claro, que era só por umas semanas, até tudo se organizar. Afinal, sou avó. E as avós ajudam.

No primeiro dia senti-me útil, quase rejuvenescida. Preparei um lanche especial, fui buscá-los à escola com um orgulho bobo no peito. O Tomás correu para mim: — Avó! Vieste mesmo! — E a Leonor deu-me a mão, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Caminhámos juntos até casa, rindo das histórias do recreio. Pensei: “Isto sim, é felicidade.”

Mas as semanas passaram. Depois meses. E agora já conto os anos. Dois anos sem uma tarde só para mim. Dois anos em que deixei de ir ao café com as amigas, de fazer hidroginástica, de ler um livro sem interrupções. Dois anos em que a minha vida passou a ser o relógio da escola, o lanche dos netos, os trabalhos de casa, as birras e as correrias pelo corredor.

No início, tentei falar com o Miguel:

— Olha filho, isto está a tornar-se pesado para mim…
— Oh mãe, é só mais um bocadinho. A Mariana ainda não conseguiu mudar o horário…

E assim ficou. Sempre “só mais um bocadinho”.

A Mariana começou a deixar recados: “Amanhã podes dar banho à Leonor? Tenho reunião.” “O Tomás tem treino de futebol às cinco.” “Se puderes passar no supermercado…”

De repente, era eu quem fazia as compras da casa deles, quem tratava das roupas das crianças, quem ouvia as queixas dos professores. A Mariana agradecia com um sorriso apressado e um “és uma santa”. O Miguel dizia: “Não sei o que faríamos sem ti.” Mas nunca ninguém perguntou: “E tu? Como estás?”

As minhas amigas começaram a notar:

— Então Maria do Céu, nunca mais apareceste ao café!
— Não posso, tenho de ir buscar os miúdos.
— Mas não tens vida própria?

Doía ouvir aquilo. Porque eu própria já me fazia essa pergunta.

Comecei a sentir-me invisível dentro da minha própria família. Um dia ouvi a Leonor dizer à mãe:

— A avó faz tudo melhor que tu!
A Mariana sorriu amarelo e respondeu:

— Pois faz… porque tem tempo.

Senti-me culpada por ser boa avó. Senti-me culpada por estar cansada.

Certa tarde, depois de deixar os miúdos em casa dos pais, sentei-me no banco do jardim em frente à escola. Olhei para as mãos — tão parecidas com as da minha mãe — e chorei baixinho. Senti falta dela. Senti falta de mim.

Quando cheguei a casa nesse dia, encontrei uma mensagem do Miguel:

“Mãe, amanhã podes ficar com eles até mais tarde? Temos jantar da empresa.”

Respirei fundo. Liguei-lhe.

— Miguel, precisamos de falar.
— Agora? Estou no trabalho…
— Sim, agora.

Ele ficou em silêncio do outro lado.

— Mãe… aconteceu alguma coisa?
— Sim, Miguel. Aconteceu que eu deixei de ter vida própria. Aconteceu que me tornei a vossa solução permanente sem ninguém perguntar se eu queria ou podia.

Ele ficou calado. Ouvi um suspiro.

— Mãe… desculpa. Nunca pensei nisso assim…
— Pois não pensaste. Porque ninguém pensa nas mães quando deixam de ser precisas para tudo menos para ajudar.

Desliguei antes que ele pudesse responder.

Nessa noite não dormi. Senti culpa por ter sido dura. Senti raiva por ter esperado tanto tempo para falar. Senti medo de perder o pouco que ainda tinha: o amor dos meus netos.

No dia seguinte, a Mariana apareceu à porta antes da hora habitual.

— Maria do Céu… posso entrar?
Entrou sem esperar resposta.

— O Miguel contou-me… Não sabíamos que te sentias assim.
Ficou em silêncio um instante.
— Eu própria sinto-me sempre em dívida contigo… mas não sei como mudar isto.

Olhei para ela — tão nova e já tão cansada — e vi-me ali há trinta anos atrás, quando também precisei da minha mãe e ela nunca disse que não.

— Mariana… eu amo os meus netos mais do que tudo. Mas também preciso de tempo para mim. Preciso de sentir que ainda sou eu — não só avó, não só mãe.
Ela assentiu devagar.

— Vamos arranjar outra solução — prometeu.

Demorou meses até conseguirem contratar uma senhora para ajudar com os miúdos algumas tardes por semana. Demorou ainda mais até eu conseguir voltar ao café com as amigas sem sentir culpa ou medo de estar a falhar à família.

Mas aos poucos fui recuperando pedaços de mim mesma.

Hoje olho para trás e pergunto-me: porque é tão difícil para nós mulheres — mães e avós — dizermos basta? Porque é que o amor nos faz esquecer quem somos?

E vocês? Já sentiram que o amor vos roubou o direito ao vosso próprio tempo?