Quando Tudo Ruiu: A Minha Vida Entre Dois Fogos

— Mariana, não podes continuar assim! — gritou a minha mãe ao telefone, a voz trémula de raiva e preocupação. — O Rui não te merece, filha. Vem para casa, traz os miúdos!

Apertei o telemóvel com força, sentindo as lágrimas ameaçarem cair. Olhei para a janela da cozinha, onde o céu cinzento de Lisboa parecia pesar sobre mim tanto quanto as palavras da minha mãe. O Rui estava na sala, a ver televisão, alheio à tempestade que se passava dentro de mim.

— Mãe, por favor… Não compliques mais — sussurrei, tentando não chorar. — Eu amo o Rui. Ele é o pai dos meus filhos.

— Amar? Isso não é amor, Mariana! Amor não é viver com medo de falar, com medo de errar! — Ela suspirou fundo. — Pensa nos teus filhos.

Desliguei antes que ela dissesse mais alguma coisa. O silêncio da casa era ensurdecedor. Os meus filhos, o Tiago e a Leonor, brincavam no quarto ao lado, alheios ao caos dos adultos. Senti-me esmagada entre dois mundos: o da família que me criou e o da família que criei.

O Rui entrou na cozinha sem olhar para mim. Pegou numa cerveja do frigorífico e murmurou:

— Outra vez ao telefone com a tua mãe? Já te disse que ela só mete veneno.

— Ela está preocupada comigo — respondi, tentando manter a voz firme.

Ele bufou e saiu, batendo com a porta. O som ecoou pelo apartamento pequeno, como um trovão. Sentei-me à mesa e enterrei a cara nas mãos. Como é que cheguei aqui?

Quando casei com o Rui, há dez anos, tudo parecia possível. Ele era divertido, trabalhador, apaixonado. Os meus pais não gostavam dele — diziam que era impulsivo demais, pouco ambicioso. Mas eu estava apaixonada e quis acreditar que juntos conseguiríamos tudo.

Os primeiros anos foram bons. Tivemos o Tiago e depois a Leonor. Mas a crise chegou, o Rui perdeu o emprego na construção civil e nunca mais foi o mesmo. Começou a beber mais, a ficar irritado por tudo e por nada. Eu arranjei trabalho num supermercado para ajudar nas contas. Os meus pais começaram a insistir que devia voltar para casa deles em Almada, que ali teria apoio.

Mas eu sentia-me presa. Se ficasse com o Rui, sofria com as discussões e a instabilidade. Se voltasse para os meus pais, sentia-me uma fracassada. E os meus filhos? Eles amavam o pai, apesar de tudo.

As discussões tornaram-se rotina. Pequenas coisas explodiam em gritos: as contas por pagar, as compras esquecidas, as visitas dos meus pais. O Rui dizia que eu dava ouvidos demais à minha mãe; a minha mãe dizia que eu era cega por amor.

Uma noite, depois de mais uma discussão sobre dinheiro — tínhamos recebido uma carta do banco sobre a hipoteca em atraso — sentei-me no chão da casa de banho e chorei até não ter mais lágrimas. Lembrei-me das palavras do meu pai quando era pequena: “Mariana, nunca deixes ninguém tirar-te o valor.” Mas agora sentia-me sem valor nenhum.

No dia seguinte, fui trabalhar como um autómato. A dona Rosa, minha colega do supermercado, percebeu logo:

— Estás tão pálida, menina… Queres falar?

Desatei a chorar ali mesmo, entre as prateleiras de detergentes.

— Não aguento mais… Sinto-me sozinha no meio de toda a gente — confessei.

Ela abraçou-me e disse:

— Às vezes temos de escolher entre ser felizes ou agradar aos outros.

Essas palavras ficaram comigo durante dias. Comecei a reparar nos meus filhos: como se assustavam quando eu e o Rui discutíamos; como ficavam calados quando ele chegava tarde e mal-humorado; como sorriam quando passávamos um fim de semana em paz.

Uma tarde de domingo, levei-os ao parque da cidade. Sentámo-nos na relva e vi-os brincar à apanhada. Senti uma pontada no peito: será que estou a roubar-lhes a infância?

À noite, tentei falar com o Rui:

— Rui… Precisamos de ajuda. Isto não está a funcionar assim.

Ele olhou para mim com olhos cansados:

— Achas que não sei? Achas que gosto disto? Mas não tenho forças para mais nada…

— Podemos procurar ajuda juntos… terapia de casal…

Ele riu-se amargamente:

— Terapia? Achas que sou maluco? Isso é para gente fraca.

Fiquei calada. Mais uma porta fechada.

Os meses passaram e nada mudou. O dinheiro era cada vez menos; as discussões cada vez mais frequentes. Os meus pais insistiam para eu sair dali; o Rui acusava-me de querer abandoná-lo.

No Natal desse ano, tudo explodiu. Estávamos todos juntos em casa dos meus pais: eu, o Rui, os miúdos. Bastou um comentário inocente do meu pai sobre as finanças para o Rui perder a cabeça.

— Sempre a meterem-se na nossa vida! — gritou ele à frente de toda a gente.

O Tiago começou a chorar; a Leonor agarrou-se à minha saia. Eu senti-me envergonhada e furiosa ao mesmo tempo.

— Basta! — gritei eu também. — Não aguento mais esta guerra!

Saí da sala com os miúdos atrás de mim. Fechei-me no quarto da infância e chorei baixinho enquanto eles adormeciam ao meu lado.

Nessa noite tomei uma decisão: não podia continuar assim. Não podia sacrificar a felicidade dos meus filhos nem a minha própria dignidade só para manter uma família “unida” à força.

No dia seguinte falei com o Rui:

— Preciso de tempo… Vou ficar uns tempos em casa dos meus pais com os miúdos.

Ele ficou em silêncio durante muito tempo antes de dizer:

— Faz o que quiseres… Já nem sei quem somos.

Arrumei algumas roupas numa mala velha e fui para Almada com os meus filhos. Os primeiros dias foram estranhos: sentia-me culpada por ter “falhado”, mas também aliviada por finalmente poder respirar sem medo de discussões.

Os meus pais receberam-nos de braços abertos mas também com muitas opiniões sobre o que devia fazer a seguir. Tive discussões com eles também — afinal ninguém entende totalmente as nossas dores internas.

O Rui ligava todos os dias no início; depois cada vez menos. Os miúdos perguntavam pelo pai e eu tentava explicar sem ferir ninguém:

— O pai precisa de tempo para pensar… Mas ele ama-vos muito.

Comecei a reconstruir-me aos poucos: arranjei um trabalho melhor numa loja em Lisboa; inscrevi-me num curso à noite; voltei a rir com os meus filhos nos passeios à beira Tejo.

O divórcio foi difícil mas inevitável. O Rui acabou por aceitar ajuda psicológica e hoje temos uma relação cordial pelo bem dos nossos filhos.

Ainda hoje me pergunto se fiz tudo certo. Se devia ter aguentado mais ou saído mais cedo. Se algum dia vou conseguir perdoar-me pelas noites em que os meus filhos ouviram gritos em vez de canções de embalar.

Mas olho para eles agora — felizes, seguros — e penso: será que existe mesmo uma escolha perfeita? Ou apenas coragem para escolher?

E vocês? Já sentiram que tiveram de partir para poderem voltar a ser inteiros?