Quando os filhos nos viram as costas: Confissões de uma mãe portuguesa

— Mãe, tu é que destruíste a nossa família! — gritou o João, com os olhos cheios de lágrimas e raiva, enquanto a Inês, mais nova, se encolhia no sofá, evitando o meu olhar. Senti o chão fugir-me dos pés. Como é que cheguei aqui? Como é que os meus próprios filhos, aqueles por quem dei tudo, agora me viam como a vilã da história?

O relógio da sala marcava quase meia-noite. O silêncio da casa era cortado apenas pelo som da chuva a bater nas janelas. O meu ex-marido, António, tinha acabado de sair, deixando atrás de si um rasto de palavras venenosas e olhares acusadores. “A tua mãe nunca pensou em vocês, só pensou nela”, disse antes de bater com a porta. E eu, ali, sozinha, a tentar juntar os cacos de uma família que já não existia.

Lembro-me do dia em que decidi sair de casa. Não foi uma decisão fácil. Foram anos a suportar traições, mentiras e humilhações. O António era um homem carismático, daqueles que todos adoravam na rua, mas em casa era outro. As discussões eram constantes, e as palavras dele cortavam mais do que qualquer faca. “És uma inútil, ninguém te vai querer”, dizia ele, sempre que eu tentava impor algum limite. Aguentei por causa dos meus filhos. Queria dar-lhes uma família, um lar. Mas chegou um dia em que percebi que, se ficasse, ia perder-me de vez.

— Mãe, porque é que não tentaste mais um bocadinho? — perguntou a Inês, com a voz trémula, naquela noite em que tudo desabou. — O pai diz que tu é que quiseste ir embora…

Senti uma dor aguda no peito. Como explicar a uma adolescente que, por vezes, o amor-próprio tem de falar mais alto? Que não se pode viver uma vida inteira a mendigar respeito? Mas eles só viam o que o pai lhes mostrava: uma mãe que “desistiu”.

Os dias seguintes foram um inferno. O João recusava-se a falar comigo. Passava horas fechado no quarto, saía para casa do pai sempre que podia. A Inês, mais sensível, chorava às escondidas. Eu tentava manter a rotina: preparar o pequeno-almoço, levá-los à escola, perguntar como correu o dia. Mas era como falar para paredes.

No trabalho, sentia-me um fantasma. Os colegas cochichavam, alguns olhavam-me com pena, outros com julgamento. “Coitada, foi trocada por outra”, ouvi uma vez no corredor. O António não perdeu tempo: apresentou a nova namorada, uma mulher mais nova, elegante, que rapidamente conquistou os miúdos com presentes e promessas de viagens.

Uma noite, ao chegar a casa, encontrei a Inês a arrumar a mala.

— Vou passar o fim de semana com o pai e a Sónia — disse, sem me olhar nos olhos.

— Inês, podemos falar um bocadinho? — pedi, sentando-me na beira da cama.

Ela encolheu os ombros.

— Não percebo porque é que não consegues ser como a Sónia. Ela está sempre bem-disposta, faz-nos panquecas ao pequeno-almoço… — disse, num tom quase infantil.

Senti uma mistura de raiva e tristeza. Como competir com alguém que só mostra o lado bom? Como explicar que as feridas que carrego não se curam com panquecas?

O João, por sua vez, tornou-se cada vez mais distante. Começou a sair com más companhias, a chegar tarde a casa. Uma noite, recebi um telefonema da polícia: tinham-no apanhado a beber com amigos no parque. Fui buscá-lo à esquadra, o coração apertado.

No carro, o silêncio era pesado. Finalmente, arrisquei:

— João, o que se passa contigo? Não és assim…

Ele olhou para mim com desprezo.

— Tu não sabes nada de mim. Só pensas em ti. Se tivesses ficado com o pai, nada disto acontecia.

As palavras dele foram como um murro no estômago. Senti-me impotente. Tinha perdido o controlo da minha vida e, pior ainda, dos meus filhos.

Procurei ajuda. Falei com uma psicóloga, tentei envolver o António em conversas familiares. Mas ele recusava sempre: “Agora é contigo. Foste tu que quiseste sair”. A família dele também me virou as costas. A minha mãe, idosa e doente, só dizia: “Filha, aguenta. Os filhos acabam por perceber”. Mas eu já não tinha forças.

Os meses passaram. O João acabou por chumbar na escola. A Inês começou a ter crises de ansiedade. Eu sentia-me a afundar num poço sem fundo. Às vezes, à noite, chorava baixinho para não os acordar. Perguntava-me onde tinha falhado. Será que devia ter aguentado mais? Será que fui egoísta?

Um dia, ao regressar do trabalho, encontrei a Inês sentada à mesa da cozinha, com os olhos vermelhos.

— Mãe… — murmurou — Desculpa. Eu só queria que tudo fosse como antes.

Abracei-a com força. Senti o coração apertar-se de emoção e alívio. Talvez houvesse esperança. Talvez, com o tempo, os meus filhos percebessem que fiz tudo por amor — por eles e por mim.

Mas o João continuava distante. Um domingo à tarde, decidi ir ter com ele ao quarto.

— João, precisamos de conversar. Sei que estás magoado comigo. Mas eu amo-te. Sempre amei e vou amar sempre.

Ele não respondeu. Ficou a olhar para o telemóvel, indiferente. Saí do quarto com lágrimas nos olhos.

Hoje, passados dois anos desde o divórcio, ainda luto todos os dias para reconquistar os meus filhos. A Inês já me perdoou, ou pelo menos tenta perceber-me. O João ainda guarda mágoa. O António casou-se com a Sónia e tem uma nova família. Eu reconstruí a minha vida aos poucos: arranjei um novo emprego, fiz novos amigos, voltei a sorrir. Mas há uma ferida que nunca sara completamente: a distância dos meus filhos.

Às vezes pergunto-me: será que algum dia vão perceber o que me levou a sair? Será que vão conseguir perdoar-me? E vocês, o que fariam no meu lugar? Como se reconquista o amor dos filhos quando tudo parece perdido?