Quando o Sangue Trai: A História de Uma Ingenuidade
— Não me olhes assim, Mariana. Eu juro que não fiz nada de mal! — A voz da minha prima Andreia ecoava pelo corredor, trémula, quase suplicante. Mas naquele momento, tudo o que eu conseguia sentir era um nó no estômago, uma mistura de raiva, incredulidade e tristeza. Como é que chegámos aqui?
Volto atrás na memória, àquela noite chuvosa de outubro em que Andreia me ligou, a chorar. “Mariana, por favor, não tenho para onde ir. O Rui pôs-me fora de casa. Preciso de ti.” Não hesitei. Sempre fomos próximas, crescemos juntas em Vila Nova de Gaia, partilhámos segredos e sonhos de infância. A minha mãe sempre dizia: “Família é tudo o que temos neste mundo.” E eu acreditei nisso com todas as minhas forças.
Abri-lhe a porta do meu pequeno apartamento em Paranhos, no Porto. Eu já vivia sozinha há dois anos, depois do divórcio difícil com o João. A solidão pesava-me, e a presença da Andreia parecia um bálsamo. As primeiras semanas foram quase felizes: cozinhávamos juntas, víamos novelas enroladas numa manta no sofá, ríamos das nossas desgraças amorosas. Ela arranjou um part-time num café ali perto e prometeu que logo arranjaria um sítio só dela.
Mas as coisas começaram a mudar. Pequenos detalhes: dinheiro que desaparecia da minha carteira, uma pulseira de prata da minha mãe que não encontrava, o cartão do supermercado que sumiu misteriosamente. Confrontei-a uma vez:
— Andreia, viste o meu cartão do Pingo Doce?
Ela encolheu os ombros:
— Não faço ideia, Mariana. Deves ter deixado cair na rua.
Quis acreditar nela. Sempre quis acreditar no melhor das pessoas — especialmente da família. Mas aquela inquietação não me largava.
Uma noite, cheguei mais cedo do trabalho e ouvi vozes na sala. Andreia falava ao telefone:
— Não te preocupes, amanhã levo-te o dinheiro. Ela nem desconfia de nada.
O sangue gelou-me nas veias. Fiquei à porta, sem coragem para entrar. Senti-me ridícula — como é que podia duvidar da minha própria prima? Mas algo dentro de mim já sabia a verdade.
No dia seguinte, decidi procurar melhor. Encontrei no fundo da gaveta dela um envelope com notas e alguns dos meus brincos desaparecidos. O choque foi tão grande que quase caí para trás. Sentei-me na cama dela e chorei baixinho durante minutos intermináveis.
Quando Andreia chegou a casa, mostrei-lhe tudo.
— Como pudeste fazer-me isto? — perguntei-lhe, a voz embargada.
Ela começou a chorar também:
— Mariana, desculpa… Eu estava desesperada! O Rui deixou-me cheia de dívidas… Não sabia o que fazer…
— E achaste que me roubar era solução? Depois de tudo o que fiz por ti?
O silêncio entre nós era pesado como chumbo. Senti-me traída de uma forma que nunca tinha sentido antes — nem mesmo quando descobri a traição do João. Isto era diferente: era sangue do meu sangue.
A notícia espalhou-se pela família como fogo em mato seco. A minha mãe ficou devastada:
— Mariana, tens de perdoar a Andreia. Ela é tua prima! Todos erramos…
Mas eu não conseguia. O meu pai foi mais duro:
— Isso é imperdoável. Se fosse comigo, nunca mais lhe falava.
Os jantares de família tornaram-se um campo minado. Uns defendiam Andreia, outros ficavam do meu lado. A minha tia Rosa ligou-me aos gritos:
— Tu é que provocaste isto tudo! Sempre foste convencida, Mariana! Achas-te melhor do que os outros!
Senti-me sozinha como nunca antes. Os amigos tentavam animar-me:
— Não deixes que isto te mude — dizia a Ana, colega do trabalho.
Mas mudou-me. Passei a desconfiar de tudo e todos. Fechava a porta à chave até para ir ao lixo. Escondia o dinheiro em sítios improváveis — dentro do saco do arroz, atrás dos livros na estante.
Andreia saiu de casa duas semanas depois daquele confronto. Não nos despedimos. Deixou apenas um bilhete: “Desculpa por tudo. Espero que um dia me consigas perdoar.” Guardei o papel numa gaveta e nunca mais lhe respondi.
Os meses passaram devagarinho. O Natal chegou e foi estranho — faltava qualquer coisa à mesa, uma ausência pesada e incómoda. A minha avó chorou durante a missa do Galo; o meu avô fingiu não perceber nada.
Comecei a fazer terapia. Precisava de entender porque é que isto me doía tanto — mais do que qualquer outra perda ou desilusão da minha vida. A psicóloga disse-me:
— Mariana, às vezes as pessoas magoam-nos porque elas próprias estão magoadas… Mas isso não desculpa o que te fez.
Perguntei-lhe:
— Como é que se volta a confiar depois disto?
Ela sorriu tristemente:
— Devagarinho. E escolhendo melhor em quem confiar.
Hoje olho para trás e vejo uma Mariana diferente: menos ingénua, talvez mais dura — mas também mais forte. Aprendi que amar alguém não significa aceitar tudo sem limites; aprendi que até o sangue pode trair.
Às vezes pergunto-me se algum dia voltarei a confiar assim em alguém — sem reservas, sem medo de ser magoada outra vez. Será possível reconstruir essa inocência? Ou será que a vida nos obriga mesmo a endurecer o coração para sobreviver?
E vocês? Já sentiram esta dor de serem traídos por quem menos esperavam? Como se volta a acreditar depois disso?