Quando o Amor se Torna Conta: O Preço de Cuidar dos Nossos Filhos
— Não é justo, Miguel! — gritei, sentindo a voz embargar-se de cansaço e frustração. — Passo os dias inteiros a cuidar da Beatriz, a limpar, a cozinhar, a garantir que tudo corre bem nesta casa. E tu chegas, jantas e vais para o sofá como se nada fosse.
Ele olhou-me, olhos semicerrados, como se tentasse decifrar se eu estava a falar a sério ou apenas a dramatizar mais um dia difícil. — Mas, Sofia, és mãe. Não é isso que as mães fazem?
Aquela frase caiu-me como uma pedra no peito. Mãe. Como se ser mãe fosse uma vocação inata, um dom que me devia preencher de alegria e sentido todos os dias. Mas ninguém me avisou que ser mãe era também solidão, era perder-me de mim mesma, era ver os meus sonhos dissolverem-se entre fraldas sujas e panelas ao lume.
Antes de casar com o Miguel, nunca falámos sobre filhos. Era um assunto que pairava no ar, mas nunca o abordámos de frente. Eu era professora primária em Setúbal, adorava o meu trabalho e sentia-me realizada. O Miguel trabalhava numa empresa de informática em Lisboa e vinha todos os dias de comboio, sempre cansado mas com aquele sorriso fácil que me conquistou desde o início.
Quando engravidei da Beatriz, foi uma surpresa. Não planeada, mas também não indesejada. Aceitámos juntos o desafio, ou assim pensei eu. No início, tudo parecia um sonho: roupinhas minúsculas, ecografias, o quarto pintado de amarelo claro. Mas depois veio a realidade.
A licença de maternidade passou num instante. Quando chegou ao fim, sentei-me com o Miguel na varanda do nosso apartamento.
— Achas que devo voltar à escola? — perguntei-lhe, hesitante.
Ele encolheu os ombros. — Se quiseres… Mas também podemos poupar no infantário se ficares em casa com ela.
E foi assim que tudo começou. Fiquei em casa. No início, parecia lógico: poupar dinheiro, estar presente nos primeiros anos da Beatriz. Mas à medida que os meses passavam, comecei a sentir-me invisível. Os meus dias eram todos iguais: acordar cedo com o choro dela, preparar papas, limpar brinquedos espalhados pelo chão, tentar manter a casa minimamente apresentável.
O Miguel continuava a trabalhar cada vez mais horas. Quando chegava a casa, queria silêncio e descanso. Eu queria conversar, partilhar as minhas angústias, mas ele parecia não perceber.
Uma noite, depois de um dia especialmente difícil — Beatriz tinha estado doente e eu não consegui dormir — sentei-me à mesa com ele.
— Miguel… Sinto que estou a trabalhar tanto como tu, ou até mais. Só que ninguém me paga por isso.
Ele riu-se, achando graça à minha observação. — Mas Sofia… Estás em casa! Não tens patrão nem horários.
— Não tenho patrão? — interrompi-o. — Tenho uma filha de dois anos que exige mais de mim do que qualquer chefe alguma vez exigiu! E tu… tu nem sequer vês isso!
O silêncio caiu entre nós como uma cortina pesada. Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas engoli-as com orgulho.
Naquela noite não dormi. Fiquei a pensar: e se eu tratasse isto como um emprego? Se o Miguel recebesse uma fatura no fim do mês pelo meu trabalho? Comecei a fazer contas: quanto custaria uma ama? Quanto custaria uma empregada doméstica? E as horas extra? E as noites mal dormidas?
No dia seguinte, sentei-me com ele à mesa do pequeno-almoço e entreguei-lhe uma folha com todos os cálculos.
— O que é isto? — perguntou ele, franzindo o sobrolho.
— É o valor do meu trabalho cá em casa. Se queres que continue a cuidar da Beatriz e da casa em exclusivo… então quero ser paga por isso.
Ele ficou lívido. — Estás maluca? Agora queres salário para seres mãe?
— Não é salário para ser mãe! É salário pelo trabalho invisível que faço todos os dias! — gritei-lhe, já sem conseguir conter as lágrimas.
A discussão arrastou-se durante semanas. A minha sogra ficou do lado dele: “No meu tempo ninguém pensava nessas modernices!” A minha mãe dizia-me para ter paciência: “Os homens são assim mesmo.” Mas eu sentia-me cada vez mais sozinha.
Comecei a evitar o Miguel. Falávamos apenas sobre o essencial: contas da casa, compras do supermercado, consultas da Beatriz. O amor foi-se esbatendo entre silêncios e mágoas não ditas.
Um dia, ao buscar Beatriz ao parque infantil, ouvi duas mães conversarem:
— O meu marido acha que eu não faço nada o dia todo… — dizia uma delas.
— O meu também! Só dão valor quando ficam sozinhos com eles um fim-de-semana inteiro!
Senti-me menos sozinha naquele instante. Não era só eu. Era um problema maior: uma sociedade inteira que desvaloriza o trabalho das mulheres em casa.
Nessa noite, decidi sair. Deixei Beatriz com o Miguel e fui jantar sozinha à beira-rio. Pedi um copo de vinho e olhei para as luzes da cidade refletidas no Tejo. Senti saudades de mim mesma — da Sofia antes de ser mãe e esposa.
Quando voltei para casa, encontrei Miguel sentado no chão da sala com Beatriz a chorar nos braços.
— Ela não pára de chorar… Não sei o que fazer… — disse ele, desesperado.
Sentei-me ao lado dele e abracei-os aos dois. Pela primeira vez em meses senti que estávamos juntos na mesma luta.
No dia seguinte ele pediu desculpa.
— Nunca pensei no quanto fazes aqui em casa… Achava que era natural… Que era fácil…
Chorámos juntos nesse dia. Decidimos procurar ajuda: fomos à terapia de casal e começámos a dividir tarefas de forma mais justa. Voltei a dar aulas meio tempo e contratámos uma senhora para ajudar na limpeza.
A nossa relação não voltou a ser igual — mas tornou-se mais honesta. Aprendemos a falar sobre as nossas necessidades antes que se transformassem em mágoa.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres continuam invisíveis dentro das suas próprias casas? Quantos homens só percebem o valor do cuidado quando são obrigados a senti-lo na pele?
E vocês? Já sentiram que o vosso trabalho invisível não tem valor? O amor resiste quando tudo se transforma em números?