Quando o Amor Não Chega: O Diário de uma Mãe Portuguesa Separada da Filha
— Não percebes, mãe? Eu preciso de ajuda! — gritou Inês, com os olhos marejados de lágrimas, enquanto eu segurava as minhas mãos trémulas sobre a mesa da cozinha. O cheiro a café acabado de fazer misturava-se com o peso das palavras dela, tornando o ar quase irrespirável.
— Inês, filha, eu já não posso… A minha reforma mal chega para mim — tentei explicar, mas ela desviou o olhar, como se as minhas palavras fossem facas a cortar-lhe a pele.
Nunca pensei que o dia chegasse em que a minha filha me olhasse com tanta frieza. Recordo-me de quando era pequena, de como corria para os meus braços depois da escola, dos sorrisos cúmplices enquanto fazíamos bolos ao domingo. Agora, tudo o que vejo é distância e mágoa.
A verdade é que sempre trabalhei muito. Fui empregada de limpeza durante trinta e cinco anos em Lisboa. O meu marido, António, morreu cedo — um acidente na construção civil deixou-me sozinha com uma menina de seis anos e uma dívida no banco. Fiz das tripas coração para que nada faltasse à Inês. Roupa lavada, comida quente, livros para a escola. Nunca tive férias, nunca comprei nada para mim sem pensar nela primeiro.
Quando Inês entrou na universidade, chorei de orgulho. Fui eu que paguei as propinas, os livros, o quarto em Coimbra. Lembro-me de passar noites sem dormir a fazer contas à vida, mas nunca lhe mostrei o desespero. Queria que ela tivesse tudo o que eu não tive.
Os anos passaram e Inês casou com o Miguel. Tiveram um filho, o meu querido Tomás. Durante algum tempo, fui feliz. Ia buscá-lo à creche quando Inês trabalhava até tarde, fazia-lhe sopa caseira e contava-lhe histórias antes de dormir. Sentia-me útil, sentia-me amada.
Mas depois veio a crise. O Miguel perdeu o emprego e Inês começou a pedir-me dinheiro com mais frequência. Primeiro para pagar a renda, depois para as contas da luz e da água. Eu dava tudo o que podia — até vendi as alianças do António para ajudar. Mas agora, reformada, já não consigo dar mais.
— Mãe, tu não percebes! O Tomás precisa de um computador novo para a escola! — insistiu ela naquele dia fatídico.
— Inês, eu só recebo 600 euros por mês… Já te dei tudo o que tinha — respondi, sentindo um nó na garganta.
Ela levantou-se bruscamente.
— Então não venhas cá mais! Não preciso de ti para nada! — gritou antes de bater com a porta.
Fiquei ali sentada, sozinha na cozinha vazia. O silêncio era ensurdecedor. Senti-me pequena, inútil. Passei dias sem conseguir comer ou dormir. Liguei-lhe dezenas de vezes; nunca atendeu. Tentei ver o Tomás à porta da escola, mas ela avisou as educadoras para não me deixarem aproximar.
Os vizinhos começaram a perguntar por eles. Eu sorria e dizia que estava tudo bem, mas por dentro sentia-me a morrer aos poucos. A solidão tornou-se minha única companhia. Passei a falar com as paredes, a olhar para as fotografias antigas como se pudessem devolver-me os dias felizes.
Uma tarde, bati à porta da casa da Inês. O Miguel abriu e olhou-me como se fosse uma estranha.
— A Inês não quer falar contigo — disse secamente.
— Só quero ver o Tomás… — supliquei.
Ele fechou a porta sem dizer mais nada.
Voltei para casa desfeita em lágrimas. Perguntei-me onde tinha falhado como mãe. Será que dei demais? Será que devia ter ensinado a Inês a lutar pelas coisas? Ou será que o amor de mãe nunca é suficiente?
Os dias passaram e comecei a perder as forças. Acordava sem vontade de sair da cama. A minha amiga Rosa tentou animar-me:
— Maria do Carmo, tu fizeste tudo pela tua filha! Não te podes culpar!
Mas como não me culpar? Uma mãe nunca deixa de se sentir responsável pelos filhos.
No Natal desse ano, preparei uma ceia só para mim: bacalhau cozido e rabanadas. Sentei-me à mesa posta para três — eu, Inês e Tomás — mas só havia silêncio e saudade. Olhei para o telemóvel vezes sem conta à espera de uma mensagem que nunca chegou.
No Ano Novo, escrevi uma carta à Inês:
“Minha filha,
Sei que estás zangada comigo. Sei que achas que te falhei. Mas quero que saibas que tudo o que fiz foi por amor. Se algum dia precisares de mim — não de dinheiro, mas de mim — estarei sempre aqui.
Com amor,
Mãe”
Nunca tive resposta.
Os meses passaram e fui aprendendo a viver com a ausência deles. Comecei a ir ao centro de dia do bairro para ocupar o tempo. Fiz novas amizades, comecei a pintar e até aprendi a mexer no computador para ver fotografias do Tomás nas redes sociais — mesmo sabendo que Inês me bloqueou em quase todas.
Às vezes vejo-os na rua: Inês apressada com sacos das compras, Tomás já crescido ao lado dela. O meu coração dispara e tenho vontade de correr para eles, mas fico parada, invisível no meio da multidão lisboeta.
Pergunto-me muitas vezes: será que um dia ela vai perceber tudo o que fiz por ela? Será que algum dia vou voltar a abraçar o meu neto?
A vida ensinou-me que o amor nem sempre é suficiente para manter uma família unida. Mas continuo aqui, à espera — porque ser mãe é nunca desistir.
E vocês? Acham que há limites para o amor de mãe? Será que dar tudo é mesmo dar demais?