Quando o Amor de uma Mãe Não Basta: A História de Teresa e Hugo
— Hugo, por favor, olha para mim! — gritei, com a voz embargada, enquanto ele me evitava, os olhos perdidos no chão da cozinha. O cheiro a café queimado misturava-se ao odor agridoce do cigarro que ele acabara de apagar à pressa. Era uma manhã fria de novembro em Lisboa, mas dentro de mim ardia um desespero antigo.
Ele não respondeu. Limitou-se a encolher os ombros, como se cada palavra minha fosse um peso insuportável. Eu sabia que aquela apatia era o escudo dele — e o meu maior medo.
Nunca imaginei que a minha vida se resumisse a isto: contar moedas para comprar pão e esconder a carteira antes de ir tomar banho. Eu, Teresa, professora primária durante vinte e cinco anos, agora reformada, sempre orgulhosa da minha casa em Benfica, via-me reduzida a vigiar o meu próprio filho como se fosse um estranho perigoso.
Tudo começou devagar. Hugo era um miúdo doce, sensível demais para este mundo duro. O pai dele, o António, morreu cedo — um acidente na autoestrada de Cascais quando o Hugo tinha apenas dez anos. Desde então, fui mãe e pai. Fiz tudo para que nada lhe faltasse. Talvez tenha feito demais.
Aos dezassete anos, Hugo começou a chegar tarde a casa. Primeiro eram as festas, depois as desculpas esfarrapadas: “Fiquei a estudar com o Ricardo”, “A Marta precisava de ajuda”. Eu queria acreditar. Mas as notas caíram, os olhos dele perderam aquele brilho travesso. Um dia encontrei uma seringa no bolso do casaco dele. O chão fugiu-me dos pés.
— Hugo, isto é teu? — perguntei-lhe nesse dia, mostrando-lhe a seringa.
Ele ficou branco como cal. Depois gritou:
— Não te metas na minha vida! — e bateu com a porta do quarto.
A partir daí, tudo foi a descer. Vieram as noites sem dormir, as chamadas da polícia — “O seu filho foi apanhado com uns amigos no Bairro Alto” — e as visitas ao hospital por overdoses. Eu perdi a conta às vezes em que me sentei na sala de espera do São José, mãos geladas, coração aos pulos.
A família afastou-se. A minha irmã Lurdes dizia:
— Teresa, tu estragaste o miúdo com mimos! Agora aguenta!
As vizinhas cochichavam no elevador:
— Olha ali a professora… quem diria? O filho dela metido na droga…
Eu sentia vergonha e raiva. Mas acima de tudo sentia medo. Medo de perder o meu filho para sempre.
Tentei tudo: psicólogos, centros de reabilitação em Sintra e até um padre que me disseram fazer milagres em Fátima. Gastei as poupanças todas. Houve alturas em que pensei vender a casa para pagar uma clínica privada. Mas Hugo fugia sempre. Voltava magro, sujo, com os olhos fundos e um sorriso triste:
— Mãe, desculpa… não consigo parar.
Nessas noites eu sentava-me ao lado dele na cama e passava-lhe a mão pelo cabelo como quando era pequeno. Chorava baixinho para ele não ouvir.
O tempo foi passando e eu fui mudando. Deixei de atender telefonemas de números desconhecidos — temendo sempre más notícias. Afastei-me das colegas da escola, das amigas do café. A minha vida era Hugo.
Um dia, depois de mais uma discussão violenta — ele queria dinheiro para “comprar comida”, mas eu sabia bem para que era — Hugo saiu porta fora e não voltou durante semanas. Foram dias de terror absoluto. Fui à polícia, aos hospitais, procurei nos bairros onde sabia que ele andava. Ninguém sabia dele.
Quando finalmente voltou, estava irreconhecível: barba por fazer, roupa rasgada, cheiro intenso a suor e álcool.
— Mãe… deixa-me ficar só esta noite — pediu ele, quase sussurrando.
Deixei-o entrar. Dei-lhe banho, comida quente e uma cama lavada. Mas nessa noite tomei uma decisão que me partiu o coração: não podia continuar assim.
No dia seguinte liguei para o centro de apoio em Chelas e pedi ajuda — desta vez para mim. Fui recebida por uma psicóloga chamada Filipa.
— Teresa, às vezes amar é saber largar — disse ela com uma voz calma mas firme.
Chorei tudo o que tinha para chorar naquele gabinete minúsculo com cheiro a desinfetante barato.
Comecei a ir às reuniões de mães como eu. Partilhávamos histórias de filhos perdidos e sonhos desfeitos. Ali percebi que não estava sozinha — e que talvez não fosse culpada de tudo.
Hugo continuou a entrar e sair das nossas vidas como uma sombra inquieta. Houve recaídas, pequenas vitórias e muitos retrocessos. Um dia apareceu com uma rapariga chamada Joana — também ela marcada pela vida — e disse:
— Mãe, vou tentar outra vez.
Dessa vez foi diferente. Ele aceitou ir para uma comunidade terapêutica no Alentejo. Durante meses só falávamos por telefone ou por cartas escritas à mão — cartas onde ele pedia desculpa e prometia tentar ser melhor.
Eu aprendi a viver sem controlar cada passo dele. Voltei a sair à rua sem medo dos olhares. Reencontrei amigas antigas no jardim da Gulbenkian e voltei a ler livros que tinha deixado esquecidos na estante.
Hoje Hugo está limpo há quase um ano. Trabalha numa pequena oficina em Setúbal e vive com Joana num quarto alugado. Ainda há dias difíceis — há sempre fantasmas à espreita — mas aprendi a confiar nele outra vez.
Às vezes pergunto-me se podia ter feito diferente. Se fui demasiado mãe ou demasiado fraca. Mas sei agora que o amor não salva tudo — por vezes só nos resta esperar e acreditar.
E vocês? Até onde iriam por um filho? Será que amar é sempre segurar… ou também saber largar?