Quando a Minha Casa Deixou de Ser Minha: O Desabafo de uma Mãe Portuguesa
— Maria, não compliques. É só por uns tempos, até encontrarmos um apartamento — disse-me o Rui, com aquele tom que mistura impaciência e culpa. Eu estava parada na cozinha, as mãos húmidas de lavar loiça, mas o coração seco de tanto engolir palavras.
Olhei para ele, para a Ana — a minha nora — e para os meus dois netos, sentados à mesa como se sempre ali tivessem pertencido. Mas não pertenciam. Aquela era a minha casa, o meu refúgio depois de uma vida inteira de trabalho e sacrifício. E agora, cada canto parecia ocupado por vozes, brinquedos espalhados e discussões sussurradas atrás das portas.
— Rui, eu só queria ter sido avisada. Isto… isto não é fácil para mim — tentei explicar, mas ele já tinha desviado o olhar para o telemóvel. A Ana fingia arrumar as mochilas dos miúdos, mas sentia-se no ar o desconforto. O silêncio entre nós era mais pesado do que qualquer móvel da casa.
Naquela noite, deitei-me cedo. Oiço os passos deles no corredor, as portas a abrir e fechar, o riso dos miúdos a ecoar pelo tecto falso. Sinto-me uma estranha na minha própria cama. O António, meu marido, ressona ao meu lado, alheio à tempestade que se instalou entre estas paredes.
No dia seguinte, acordo com o cheiro a café queimado. A Ana já está na cozinha, mexendo nas minhas gavetas à procura de colheres. Sorrio-lhe por educação.
— Bom dia, Maria. Espero que não se importe, mas fiz café para todos — diz ela.
— Claro que não me importo — minto. Mas importo-me. Importo-me com cada pequena invasão: os sapatos do Rui no corredor, a música alta dos miúdos, as conversas sussurradas à noite.
O António acha que estou a exagerar.
— São da família, Maria. Não te esqueças do que passámos quando éramos novos. Também vivemos apertados com os teus pais — recorda-me ele ao jantar.
— Mas nós pedimos licença! Não entrámos assim… — respondo-lhe, sentindo a voz tremer.
Ele encolhe os ombros e volta à televisão. Sinto-me sozinha no meio da multidão.
Os dias passam e a tensão cresce. O Rui chega tarde do trabalho e mal fala comigo. A Ana parece sempre ocupada demais para conversar. Os miúdos gritam e correm pela casa como se fosse um parque infantil.
Uma noite, não aguento mais. Oiço-os discutir no quarto deles — vozes baixas mas carregadas de raiva.
— Não posso mais, Rui! A tua mãe está sempre a olhar-me de lado! — ouço a Ana dizer.
— Ela é assim… Vai passar — responde ele, mas nem ele acredita nas próprias palavras.
Choro baixinho na minha almofada. Sinto-me culpada por não conseguir ser aquela mãe compreensiva que todos esperam. Mas também sinto raiva — raiva por me terem tirado o pouco sossego que tinha conquistado.
No domingo seguinte, durante o almoço, tudo explode.
— Mãe, tens de perceber que isto não é fácil para nós! — atira o Rui, depois de eu lhe pedir para não deixar os brinquedos espalhados pela sala.
— E para mim é? Achas que é fácil ver a minha casa transformada num caos? — respondo-lhe, a voz embargada.
O António tenta acalmar-nos:
— Já chega! Somos família!
Mas ninguém ouve. A Ana levanta-se da mesa e vai chorar para o quarto. Os miúdos ficam calados pela primeira vez em dias.
Depois desse dia, tudo mudou. O Rui começou a procurar casa com mais afinco. A Ana evitava-me sempre que podia. Os miúdos já não me pediam histórias antes de dormir.
Uma tarde, encontrei o Rui sentado na varanda.
— Mãe… desculpa — disse ele, sem me olhar nos olhos. — Sei que foi tudo muito em cima… Mas estava desesperado.
Sentei-me ao lado dele e ficámos em silêncio durante minutos longos demais.
— Eu só queria paz… — confessei-lhe finalmente. — Só queria sentir que ainda tenho um lugar nesta casa.
Ele apertou-me a mão e prometeu que iam sair assim que possível. Mas nada voltou a ser como antes.
Quando finalmente partiram, semanas depois, a casa ficou silenciosa demais. Senti falta dos gritos dos miúdos, das discussões à mesa, até do cheiro a café queimado da Ana. Mas acima de tudo senti um vazio difícil de explicar.
Agora passo os dias a arrumar gavetas vazias e a pensar: será que fui egoísta? Ou será que todos temos direito ao nosso espaço? O amor de mãe tem limites? E vocês… já sentiram a vossa casa deixar de ser vossa?