Quando a doença da minha filha revelou a verdade que eu nunca quis saber – a história de um pai português que teve de reconstruir a vida

— Pai, dói-me muito o peito… — ouvi a voz trémula da Mariana, enquanto eu tentava convencê-la a comer mais uma colher de sopa. O relógio marcava quase meia-noite, e o silêncio pesado da casa só era interrompido pela respiração ofegante da minha filha. Olhei para ela, tão frágil, com os olhos grandes cheios de medo, e senti um aperto no peito que me sufocava.

A Teresa não estava em casa. Aliás, já não estava há três dias. Saiu numa manhã de quarta-feira, dizendo apenas que ia ao supermercado. Não levou nada além da carteira. Nem sequer um casaco. No início pensei que era mais uma das suas crises, mas à medida que as horas passavam e o telemóvel continuava desligado, o pânico começou a instalar-se.

— Mariana, aguenta só mais um bocadinho, filha. Vou já ligar para o hospital — disse-lhe, tentando disfarçar o medo na voz. Mas ela percebeu. Sempre percebeu tudo em mim.

Enquanto esperava pela ambulância, sentei-me no chão da cozinha e chorei baixinho. Não queria que ela me visse assim, mas já não tinha forças para esconder o desespero. O que é que eu tinha feito de errado? Porque é que a Teresa nos tinha deixado? E agora, com a Mariana doente, como é que eu ia conseguir ser pai e mãe ao mesmo tempo?

No hospital, tudo aconteceu demasiado depressa. Exames, perguntas, médicos apressados. Lembro-me de um deles me perguntar se havia historial de doenças cardíacas na família da Teresa. Hesitei. Não sabia. Nunca falámos sobre isso com detalhe. A Teresa sempre foi reservada sobre o passado dela.

— O senhor tem certeza absoluta de que é o pai biológico da Mariana? — perguntou-me uma médica, com uma frieza cortante.

Fiquei sem ar. Senti o chão fugir-me dos pés.

— Claro que sou! — respondi, quase ofendido.

Ela olhou para mim com pena.

— É que há aqui algumas incompatibilidades genéticas…

A partir desse momento, tudo se tornou um borrão. Lembro-me de ter saído do hospital em piloto automático, de ter ligado para todos os amigos e familiares à procura da Teresa — ninguém sabia dela. Lembro-me de ter passado noites em claro ao lado da Mariana, a ouvir o bip das máquinas e a rezar para que ela sobrevivesse.

Quando finalmente recebi os resultados dos exames genéticos, o mundo desabou de vez: eu não era o pai biológico da Mariana.

Senti raiva. Senti vergonha. Senti-me traído por uma mulher com quem partilhei metade da minha vida. Mas acima de tudo, senti medo — medo de não conseguir amar aquela menina como antes.

A Mariana acordou no dia seguinte e sorriu-me com aquela inocência desarmante.

— Pai… vais ficar sempre comigo, não vais?

Chorei ali mesmo, à frente dela. Abracei-a com todas as forças e prometi-lhe que nunca a ia abandonar.

Os dias seguintes foram um inferno. A família da Teresa começou a ligar-me, exigindo explicações sobre o paradeiro dela. Os meus pais vieram do Porto para me ajudar com a Mariana, mas eu sentia-me sozinho como nunca antes.

— Tens de ser forte por ela — dizia-me a minha mãe, enquanto passava a ferro as roupas da neta.

Mas como é que se é forte quando tudo aquilo em que acreditámos era mentira?

A Mariana precisava de um transplante urgente. Os médicos disseram-me que era improvável encontrar um dador compatível em Portugal — as listas eram longas e os recursos escassos. Passei dias a pesquisar na internet, a enviar emails para hospitais em Espanha e França, a pedir ajuda em fóruns anónimos.

Uma noite, sentei-me à mesa da cozinha com os papéis do divórcio à minha frente (sim, porque entretanto recebi uma carta registada da Teresa a pedir o divórcio). Olhei para a fotografia da nossa família pendurada na parede: eu, a Teresa e a Mariana na praia da Nazaré, todos sorridentes como se nada pudesse destruir aquela felicidade.

— Porque é que fizeste isto connosco? — sussurrei para o vazio.

No meio do caos, comecei a reparar em pequenas coisas: como a Mariana sorria sempre quando via desenhos animados antigos; como gostava de pôr sal demais na sopa; como adormecia com o meu casaco velho nos braços porque cheirava a mim. E percebi que nada disso tinha mudado — ela continuava a ser a minha filha.

Certa tarde, enquanto esperávamos por mais exames no hospital de Santa Maria, ouvi duas enfermeiras a cochichar:

— Coitado do pai… dizem que nem é o verdadeiro pai dela.
— Pois… mas vê-se bem o amor que ele tem pela miúda.

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Quem eram elas para julgar? Quem era eu para duvidar do amor que sentia?

A Mariana piorou subitamente numa noite chuvosa de novembro. O hospital ligou-me às três da manhã: “Venha depressa.” Corri pelas ruas molhadas de Lisboa como se pudesse enganar o tempo. Quando cheguei ao quarto dela, vi-a tão pequena na cama enorme, ligada às máquinas.

— Pai… — murmurou ela — tens medo?

Sentei-me ao lado dela e segurei-lhe a mão gelada.

— Tenho medo de te perder — confessei-lhe.

Ela sorriu com uma maturidade estranha para alguém tão novo.

— Eu também tenho medo… mas sei que vais ficar bem.

Naquele momento percebi: não importava o sangue ou os genes — importava o amor e os momentos partilhados.

A Teresa nunca mais apareceu. Dizem que foi vista em Espanha com outro homem. Recebi uma carta dela meses depois: “Desculpa por tudo. Não consegui viver com a mentira.” Não consegui perdoá-la — pelo menos não ainda.

A Mariana sobreviveu ao transplante graças a um dador anónimo francês. Hoje tem vinte anos e estuda medicina no Porto. Continua a chamar-me “pai” com aquele sorriso maroto que sempre me derreteu.

Às vezes olho para ela e pergunto-me: teria sido diferente se soubesse desde o início? Teria amado menos? Teria fugido como fez a Teresa?

No fundo sei que não. Porque ser pai é muito mais do que biologia — é estar presente nos piores momentos e nunca desistir.

E vocês? Conseguiriam amar um filho sabendo que não é vosso? Ou será que há verdades que deviam ficar para sempre enterradas?