Os Limites do Coração: A História de uma Mãe Lisboeta
— Mãe, preciso mesmo que me emprestes dinheiro outra vez. Não tenho como pagar a renda este mês. — A voz do Rui ecoou pelo corredor estreito do nosso T2 em Chelas, carregada de urgência e vergonha. Senti o coração apertar, como sempre. O relógio da cozinha marcava quase meia-noite, mas o sono já me tinha abandonado há horas.
Olhei para ele, sentado à mesa com as mãos entrelaçadas, os olhos vermelhos de cansaço e talvez de choro. O Rui tem trinta e dois anos, mas naquele momento parecia-me ainda o menino que vinha pedir colo depois de um pesadelo. Só que agora os pesadelos eram outros: dívidas, empregos que não duram, promessas quebradas.
— Rui, já falámos sobre isto — tentei manter a voz firme, mas falhei. — Eu não posso continuar a sustentar-te assim. O teu pai já não fala comigo por tua causa. A tua irmã nem sequer vem cá a casa…
Ele baixou a cabeça. O silêncio pesou entre nós como uma manta molhada. Lembrei-me das discussões com o António, meu marido, sempre a dizer que eu estava a estragar o Rui, que ele nunca ia crescer se eu continuasse a resolver-lhe os problemas. E da Inês, a minha filha mais velha, que se afastou tanto que agora só manda mensagens secas no Natal.
Mas como é que uma mãe vira as costas ao filho? Como é que se diz “não” quando se vê nos olhos dele o mesmo medo que eu sentia quando era pequena e a minha mãe me deixava sozinha em casa?
— Eu prometo que é só desta vez — murmurou ele, quase sem voz.
Suspirei. Fui buscar a carteira ao quarto, sentindo-me dividida entre o alívio de poder ajudar e a culpa de estar a alimentar um ciclo sem fim. Dei-lhe cinquenta euros — tudo o que podia naquele mês — e ele agradeceu com um abraço apertado, daqueles que me faziam lembrar quando era pequeno.
Na manhã seguinte, o António estava sentado à mesa com o jornal aberto mas sem ler uma linha.
— Deste-lhe dinheiro outra vez, não foi? — perguntou sem me olhar nos olhos.
— Ele precisava…
— E nós? Não precisamos? Achas justo? — A voz dele era baixa mas cortante. — Ele nunca vai aprender se tu continuares assim.
Fiquei calada. Não tinha resposta. Só sentia um nó na garganta e uma vontade enorme de chorar. O António levantou-se e saiu para o trabalho sem dizer mais nada.
O resto do dia arrastei-me pelo trabalho no supermercado, distraída, a pensar no Rui e no António e na Inês. Lembrei-me de quando éramos todos felizes, antes do desemprego do Rui, antes das dívidas, antes das discussões intermináveis sobre quem tem culpa do quê.
À noite, tentei ligar à Inês. Ela atendeu ao fim de vários toques.
— Mãe, estou ocupada.
— Só queria ouvir a tua voz…
— Olha, não me leves a mal, mas eu não aguento mais falar sobre o Rui. Ele tem idade para se desenrascar. Tu é que não sabes dizer “não”.
— Inês…
— Desculpa, mãe. Tenho mesmo de ir.
Fiquei a olhar para o telefone durante minutos. Senti-me sozinha como há muito não me sentia. O apartamento parecia mais pequeno ainda, as paredes a fechar-se sobre mim.
Nessa noite sonhei com a minha mãe. Ela também foi uma mulher dura, criada na pobreza da Beira Baixa, sempre a dizer que “cada um carrega a sua cruz”. Lembrei-me de como ela me ralhava quando eu dava esmola na rua: “Primeiro cuida dos teus!” Mas quem são “os meus”? Não são todos?
Os dias seguintes foram iguais: trabalho, contas para pagar, silêncios pesados à mesa. O Rui apareceu menos vezes — talvez por vergonha, talvez por orgulho ferido. O António falava cada vez menos comigo; dormíamos costas voltadas.
Uma tarde, ao chegar a casa, encontrei o Rui sentado nas escadas do prédio. Tinha sido despejado do quarto onde vivia com outros rapazes em Marvila.
— Não tenho para onde ir — disse ele, os olhos fundos e vazios.
Levei-o para casa. O António nem falou com ele; foi direto para o quarto e bateu com a porta.
Durante semanas vivi entre dois fogos: o filho perdido no sofá da sala e o marido ausente no quarto. A comida começou a faltar; as contas acumularam-se na gaveta da cozinha. No supermercado pediram-me para fazer mais horas; aceitei sem pensar duas vezes.
Uma noite ouvi o António ao telefone com alguém:
— Não aguento mais isto… Ela não percebe que está a destruir tudo… — A voz dele era um sussurro desesperado.
No dia seguinte encontrei um bilhete na mesa:
“Preciso de espaço. Vou para casa do meu irmão uns tempos. Fala comigo quando perceberes que isto não pode continuar assim.”
Senti-me desabar por dentro. O Rui olhou para mim assustado quando me viu chorar descontroladamente na cozinha.
— Mãe… desculpa… — tentou abraçar-me.
Afastei-o pela primeira vez na vida.
— Rui, eu amo-te mais do que tudo… mas não posso continuar assim. Precisas de ajuda profissional. Eu já não consigo sozinha.
Ele ficou parado à minha frente, como se tivesse levado um murro no estômago.
— Vais pôr-me fora?
— Não… mas tens de procurar ajuda. Eu vou contigo se quiseres… mas isto não pode ser só eu contra o mundo.
Naquela noite dormi pouco. Senti-me egoísta e má mãe. Mas também senti um alívio estranho — como se finalmente tivesse dito em voz alta aquilo que me sufocava há anos.
O Rui aceitou procurar ajuda num centro de apoio social em Lisboa. Começou devagarinho: primeiro conversas com assistentes sociais, depois pequenas tarefas num programa de reinserção profissional. Não foi fácil; houve recaídas e discussões feias pelo meio.
O António voltou passado dois meses. Sentámo-nos todos à mesa pela primeira vez em muito tempo — eu, ele e o Rui — e chorámos juntos em silêncio.
A Inês ainda não voltou totalmente; manda mensagens mais simpáticas agora, pergunta pela saúde do irmão e do pai. Sei que vai demorar até sermos família outra vez.
Hoje olho para trás e pergunto-me: fiz bem? Devia ter dito “não” mais cedo? Ou será que amar demais também é uma forma de egoísmo?
Será que alguma vez aprendemos onde acaba o dever de mãe e começa o direito à nossa própria felicidade? E vocês? Já sentiram este peso no peito?