O Silêncio dos Filhos: A História de Teresa e o Preço do Amor Incondicional
— Não me venhas pedir mais dinheiro, Mariana! — ouvi a voz da Teresa ecoar pela cozinha, entre o cheiro a cebola refogada e o vapor das panelas. Era uma tarde fria de novembro, e eu estava sentada à mesa, a tentar ajudar com as contas. Mariana, a filha mais velha da Teresa, tinha acabado de chegar da universidade, largando a mochila no chão com um estrondo.
— Mãe, não percebes? Preciso mesmo deste livro para o exame! — insistiu Mariana, os olhos faiscando de impaciência. — Toda a gente tem!
Teresa suspirou, limpando as mãos ao avental. Eu conhecia aquele olhar: exausta, mas determinada. Desde que o António as deixara — ela e os três filhos — para ir viver com uma colega do escritório, Teresa nunca mais foi a mesma. Fechou-se ao mundo dos homens e abriu-se apenas para os filhos. Trabalhava em dois restaurantes ao mesmo tempo, fazia bolos para fora e ainda arranjava tempo para ir às reuniões da escola.
— Mariana, já te dei o dinheiro do passe, do almoço e das fotocópias esta semana. Não posso fazer milagres — respondeu ela, tentando manter a voz firme.
Mariana bufou e saiu da cozinha sem agradecer. Teresa olhou para mim, os olhos marejados.
— Eles não percebem… nunca percebem — murmurou.
Lembro-me de quando tudo começou a desmoronar. O António saiu de casa numa noite chuvosa, sem olhar para trás. Teresa ficou sozinha com três crianças pequenas e um coração despedaçado. Eu tentei ajudá-la como pude, mas ela recusava quase sempre. “Os meus filhos são tudo o que tenho”, dizia-me.
Os anos passaram. O João, o do meio, era rebelde. Faltava às aulas, metia-se em sarilhos com os amigos do bairro. Teresa corria atrás dele, ia buscá-lo à esquadra mais vezes do que gostaria de admitir. A Carolina, a mais nova, era doce mas insegura, sempre à procura de aprovação.
Teresa nunca pensou em si própria. Recusou convites para sair, para namorar, para viajar. “Não posso deixar os meus filhos sozinhos”, justificava-se. Trabalhava até à exaustão. Lembro-me de noites em que adormecia sentada à mesa da cozinha, com os livros de receitas abertos à sua frente.
Quando os filhos cresceram e começaram a sair de casa, pensei que finalmente teria tempo para si. Mas não foi assim. Mariana arranjou um namorado em Lisboa e só vinha a casa pedir dinheiro ou roupa lavada. João foi viver com amigos e raramente ligava. Carolina entrou na faculdade no Porto e parecia esquecer-se da mãe durante semanas.
Foi numa dessas semanas que Teresa começou a sentir-se mal. Primeiro foi o cansaço extremo, depois as dores no peito e finalmente o diagnóstico: cancro do pâncreas. Eu estava com ela quando recebeu a notícia.
— E agora? — perguntou-me ela, com um fio de voz. — Quem vai cuidar deles?
— Eles já são adultos, Teresa… Agora tens de cuidar de ti.
Mas Teresa não sabia como fazê-lo. Tentou esconder a doença dos filhos durante algum tempo. Quando finalmente lhes contou, esperava que corressem para junto dela. Mas não foi isso que aconteceu.
— Mãe, não posso faltar às aulas — disse Mariana ao telefone.
— Tenho um trabalho novo… é complicado sair agora — justificou João.
— Estou cheia de exames… depois ligo-te — prometeu Carolina.
Eu via Teresa definhar um pouco mais a cada chamada não atendida, a cada mensagem ignorada. Os vizinhos perguntavam por ela; eu fazia-lhe companhia sempre que podia. Mas os filhos… nada.
Uma noite encontrei-a sentada na sala escura, a olhar para uma fotografia antiga dos três filhos pequenos.
— Dei-lhes tudo… tudo — sussurrou ela, as lágrimas correndo-lhe pelo rosto magro. — E agora estou sozinha.
Tentei animá-la:
— Eles vão perceber um dia, Teresa. Ainda vão vir ter contigo.
Mas os dias passavam e nada mudava. O Natal aproximava-se e Teresa insistiu em fazer rabanadas e sonhos como sempre fazia. “Pode ser que venham”, dizia-me com esperança.
Na véspera de Natal, preparei tudo com ela: a mesa posta, as velas acesas, o cheiro doce no ar. Mas ninguém apareceu. Mariana mandou uma mensagem: “Desculpa mãe, estou com o Rui na casa dos pais dele.” João nem respondeu. Carolina ligou já depois da meia-noite: “Feliz Natal mãe! Estou cansada… amo-te!”
Vi Teresa partir um pouco mais naquela noite. No dia seguinte acordou com febre alta; levei-a ao hospital. Ficou internada durante semanas. Eu ia todos os dias; lia-lhe livros, levava-lhe flores do jardim dela.
Um dia perguntei-lhe:
— Queres que ligue aos teus filhos? Talvez se vierem…
Ela abanou a cabeça:
— Não quero obrigá-los… O amor não se pede.
O tempo passou devagar no hospital. Os médicos faziam o possível; eu fazia promessas silenciosas à Nossa Senhora de Fátima todas as noites. Mas os filhos continuavam ausentes.
Quando Teresa piorou e ficou em coma induzido, liguei eu mesma aos filhos:
— A vossa mãe está muito mal… Se querem despedir-se dela, é agora.
Mariana apareceu dois dias depois, apressada e nervosa:
— Não sabia que era tão grave…
João entrou no quarto sem dizer palavra; olhou para a mãe como se fosse uma estranha. Carolina chorava baixinho ao canto da cama.
Teresa partiu nessa noite, serena e em paz — talvez porque finalmente os viu ali juntos.
No funeral houve lágrimas e promessas vazias:
— Devíamos ter vindo mais vezes…
— Ela era uma grande mãe…
Mas eu sabia que nada disso importava agora.
Hoje olho para trás e pergunto-me: valeu a pena tanto sacrifício? O amor de mãe deveria ser incondicional até ao ponto do esquecimento próprio? Ou será que devíamos ensinar os nossos filhos a amar-nos também?
E vocês? Acham que há limites para o amor de mãe? Até onde iriam por um filho?