O Sacrifício de Uma Mãe: A Luta de Teresa e a Nossa Traição Involuntária
— Não me digas que vais mesmo sair de casa, António! — gritei-lhe, a voz embargada pela raiva e pelo medo. O eco das minhas palavras ficou suspenso na sala, entre as malas feitas à pressa e o olhar vazio dos nossos filhos, Miguel e Sofia. António não respondeu. Pegou nas chaves do carro, olhou-me uma última vez — um olhar frio, distante, como se já não me reconhecesse — e saiu. A porta bateu com força, e naquele instante soube que a minha vida nunca mais seria a mesma.
Fiquei ali, parada, com as mãos trémulas e o coração aos pulos. Miguel, com apenas dez anos, aproximou-se devagarinho e perguntou:
— Mãe, o pai vai voltar?
Não consegui responder. Abracei-o com força, tentando protegê-lo do mundo que desabava à nossa volta. Sofia, mais nova, chorava baixinho no canto do sofá, agarrada ao seu urso de peluche. Senti-me esmagada por uma culpa imensa — como se tudo aquilo fosse culpa minha.
Naquela noite não dormi. Sentei-me à mesa da cozinha, rodeada de contas por pagar, cartas do banco e um silêncio ensurdecedor. O relógio marcava três da manhã quando percebi que não fazia ideia de como ia alimentar os meus filhos no dia seguinte. Sempre fui dona de casa; António era quem trazia o dinheiro para casa. Agora era só eu — eu contra o mundo.
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. Tive de engolir o orgulho e pedir ajuda à minha irmã, Mariana. Ela veio logo, mas não sem antes lançar aquele olhar de julgamento que sempre me irritou:
— Teresa, tu nunca quiseste trabalhar. Agora vês no que dá? — disse ela, enquanto arrumava as compras que trouxe.
— Mariana, não preciso desse sermão agora… Preciso só que me ajudes a encontrar um trabalho.
Ela suspirou e abraçou-me. Pela primeira vez em anos senti-me pequena, frágil. Mas não podia deixar-me ir abaixo. Os meus filhos precisavam de mim.
Arranjei um emprego como empregada de limpeza num hotel do centro de Lisboa. O trabalho era duro; as mãos ficaram gretadas dos produtos químicos e as costas doíam-me todos os dias. Mas cada euro que ganhava era uma vitória. À noite chegava a casa exausta, mas fazia questão de ajudar Miguel com os trabalhos da escola e de contar uma história à Sofia antes de dormir.
O tempo foi passando e comecei a perceber que a nossa relação mudara. Miguel tornou-se mais fechado; passava horas no quarto, calado, a desenhar monstros em folhas soltas. Sofia fazia birras por tudo e por nada; chorava quando eu saía para trabalhar e recusava-se a comer sozinha.
Uma noite, depois de um turno especialmente difícil, encontrei Miguel sentado à mesa da cozinha com um caderno aberto à sua frente.
— O que fazes ainda acordado? — perguntei.
Ele olhou para mim com olhos vermelhos.
— Tenho medo que não voltes… — murmurou.
Senti um nó na garganta. Sentei-me ao lado dele e prometi:
— Eu nunca vos vou abandonar. Nunca.
Mas no fundo sabia que já os estava a perder.
As discussões com Mariana tornaram-se mais frequentes. Ela achava que eu devia aceitar a ajuda dos nossos pais — mas eu não queria voltar para aquela aldeia onde todos sabiam da minha vida.
— Teresa, estás a ser orgulhosa! Os teus filhos precisam de estabilidade!
— Eles precisam é de uma mãe que lute por eles! — respondi-lhe, quase aos gritos.
A verdade é que lutava tanto que me esquecia de viver. Esquecia-me de rir com eles, de brincar, de ouvir os seus medos. Só pensava em contas, em horários, em sobreviver.
Um dia recebi uma chamada da escola: Miguel tinha sido apanhado a roubar um telemóvel na mochila de um colega. Fui buscá-lo à escola com o coração nas mãos.
No caminho para casa ninguém falou. Quando chegámos ao nosso pequeno apartamento, sentei-me no sofá e olhei-o nos olhos:
— Porquê, Miguel? Porquê fizeste isto?
Ele chorou como nunca o tinha visto chorar.
— Eu só queria ter algo bonito… Como os outros meninos…
Abracei-o com força. Senti-me falhar como mãe — como se todo o meu esforço não tivesse servido para nada.
Com Sofia as coisas também pioraram. Começou a ter ataques de ansiedade; acordava a meio da noite a gritar pelo pai. Levei-a ao psicólogo, mas cada consulta era mais uma despesa impossível de pagar.
Numa noite chuvosa, Mariana apareceu em minha casa sem avisar.
— Teresa, isto não pode continuar assim! Tu estás a destruir-te… E eles também!
Desatei a chorar. Pela primeira vez admiti que não conseguia sozinha. Aceitei voltar para casa dos meus pais — uma derrota amarga, mas talvez necessária.
Na aldeia tudo parecia igual ao passado: as ruas estreitas, as vizinhas à janela a comentar baixinho sobre “a Teresa que voltou sozinha”. Os meus pais receberam-nos de braços abertos, mas senti o peso do fracasso em cada olhar.
Miguel melhorou um pouco; arranjou amigos novos e começou a jogar futebol no clube local. Sofia demorou mais tempo a adaptar-se; continuava a perguntar pelo pai todas as noites.
António ligava raramente. Quando vinha visitar os filhos era sempre uma festa — trazia presentes caros e promessas vazias. Eu ficava na cozinha a ouvir as gargalhadas deles misturadas com o som do meu coração partido.
Um dia ouvi Miguel dizer ao pai:
— Porque é que não podes ficar connosco?
António respondeu:
— O trabalho em Braga não me deixa… Mas eu amo-vos muito.
Quando ele foi embora, Miguel trancou-se no quarto e atirou o presente para o lixo.
Os anos passaram assim: entre idas e vindas, entre esperanças e desilusões. Trabalhei numa padaria da aldeia; Sofia cresceu tímida e desconfiada; Miguel tornou-se rebelde na adolescência — começou a faltar às aulas e a sair com más companhias.
Uma noite fui chamada à GNR: Miguel tinha sido apanhado numa rixa à porta do café da vila. Quando cheguei lá vi-o sentado num banco frio, com sangue no lábio e os olhos cheios de raiva.
— Porque fazes isto comigo? — perguntei-lhe em lágrimas.
Ele respondeu:
— Não é contigo… É comigo! Eu odeio esta vida!
Senti-me impotente. Tudo o que fizera para protegê-los parecia ter sido em vão.
Sofia acabou por sair de casa aos 18 anos para estudar enfermagem em Coimbra. Miguel foi trabalhar para França com um tio — precisava fugir daquela aldeia tanto quanto eu precisei um dia.
Agora estou sozinha na casa dos meus pais. Olho para as fotografias dos meus filhos espalhadas pela sala e pergunto-me onde errei. Será que devia ter pedido ajuda mais cedo? Será que devia ter lutado menos contra o mundo e mais por nós?
Às vezes penso: será que o amor de mãe é suficiente para curar todas as feridas? Ou será que há dores que nem o tempo consegue sarar? Gostava tanto de ouvir as vossas histórias… Como lidaram com as vossas próprias batalhas familiares?